São Paulo, quarta-feira, 27 de dezembro de 1995
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A economia do cadáver

GILBERTO DIMENSTEIN

Descobri aqui um sombrio indicador para comparar o desenvolvimento dos países: número de cadáveres por aluno nas aulas de anatomia.
Uma das melhores dos Estados Unidos, a Faculdade de Medicina de Cornell, em Nova York, com muito esforço (e dinheiro) consegue entregar um cadáver para cada dez alunos. E por tempo determinado: depois de um ano, o corpo volta aos pedaços à família que, além do orgulho de ter contribuído para o avanço da ciência, recebe gratuitamente o enterro.
Nas melhores faculdades brasileiras, a relação é de empate: um cadáver para cada aluno, sem limitação de tempo de experimento. Até porque não existe para quem devolver o corpo, a imensa maioria é de indigentes abandonados nos hospitais.
Comparando Brasil e EUA, a relação cadáver-aluno é, por coincidência, exatamente inversa à renda por habitante -o brasileiro tem, em média, uma renda dez vezes menor do que o americano.
Com o aumento do número de alunos de medicina, o cadáver ganhou valor e, claro, acabou em mercado clandestino, envolvendo o solene mundo acadêmico. Importaram corpos do Terceiro Mundo.
Um dos escândalos explodiu porque um viscoso líquido vazou de uma embalagem embarcada da Filadélfia para uma faculdade em Denver. Abriram e descobriram 25 cabeças e cinco braços.
A investigação descobriu que, no mercado clandestino, uma cabeça saía por aproximadamente US$ 300; um braço, por US$ 100.
A abundância de cadáveres explica mais do que os frios números do PIB. Um dos efeitos da miséria é reduzir o valor da vida.

Pesquisadores que vivem no circuito Brasil e EUA dizem que as boas faculdades brasileiras formam na graduação médicos tão competentes como os americanos. Mais uma vez os indigentes contribuem involuntariamente para o avanço da ciência.
Nos lotados pronto-socorros brasileiros, um estudante se transforma não em mão-de-obra auxiliar, mas peça vital no atendimento, realizando seu aprendizado mais rapidamente do que o americano.

Uma ótima notícia para os religiosos. Segundo pesquisas desenvolvidas aqui, rezar faz bem para a saúde, em especial, ao coração. Há 250 estudos nas escolas de medicina.

O professor Jeffrey Levin, da Faculdade de Eastern Virginia, pesquisou a recuperação de vítimas de ataques cardíacos. Os que frequentavam os cultos regularmente, e os não-praticantes. Segundo ele, os devotos tendem a ser mais confiantes, sentem-se mais protegidos e se recuperam melhor.

Ao iniciar o balanço de final de ano numa coluna passada, registrei que o principal fato novo do ano foi a baixa taxa de inflação em 22 anos -a democracia conseguiu, enfim, bater o regime militar.

Mas a principal idéia social do ano, fora da área pública, tem o título de Travessia e se deve à CUT, mais precisamente ao sindicato dos Bancários de São Paulo, com o apoio do PT. Numa decisão histórica, por romper a tradição corporativista dos sindicatos, eles resolveram civilizar o centro da cidade.
Fizeram inusitadas parcerias com bancos como o de Boston e Garantia para educar e treinar os meninos de rua, adotando as mais modernas concepções pedagógicas.

Importância do episódio: no momento em que os dirigentes sindicais se conscientizarem de que lutar por melhor educação é tão ou mais importante para o bem-estar de suas famílias quanto salários, o Brasil vai dar um salto tão gigantesco na área social como deu na área econômica ao segurar a inflação.

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