São Paulo, quarta-feira, 27 de dezembro de 1995
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Um novo relacionamento com o usuário de drogas

ALBERTO ZACHARIAS TORON

Uma pesquisa de opinião, divulgada até com certo alarido, revelou que algo em torno de 80% dos entrevistados eram a favor da criminalização da conduta de portar drogas para consumo próprio. Curioso é que a mesma fonte indicava que nada menos do que 95% dessas pessoas, caso tivessem um familiar envolvido com o problema, não gostariam de vê-lo às voltas com a polícia ou, menos ainda, preso.
Os resultados sem dúvida apontam para uma certa hipocrisia, afinal como justificar o rigor para com os "outros", expresso na criminalização genérica, e a aversão para o mesmo tratamento quando se trata de um ente próximo?
Todavia, nesta pesquisa, numa outra linha de interpretação, podem-se também perceber duas tendências na opinião pública. Uma, que quer manter como coisa proibida, ilegal, a aquisição, o porte e a guarda de substância entorpecente para uso próprio. Outra, que não quer ver este usuário, via de regra jovem, estigmatizado pelos "comemorativos" policiais e processuais. Seria possível condensar estas duas tendências no âmbito de uma nova lei?
A Comissão Especial da Câmara dos Deputados, que recentemente aprovou o Projeto de Lei 4.591/94, disse que sim. E com razão.
De fato, o projeto em questão continua a catalogar como criminosas as condutas que possibilitam o uso, isto é, adquirir, receber, guardar ou trazer consigo droga, pois prevê pena restritiva de direitos para o infrator (artigo 17) tal como admitem o Código Penal (artigo 32) e a Constituição (art. 5º, XLVI).
Mas, por outro lado, a exemplo do que faz a lei dos Juizados Especiais, que cuida das infrações penais de menor potencial ofensivo, o projeto estabelece que o "usuário surpreendido com pequena quantidade de substância entorpecente, para consumo pessoal" terá anotado seu nome e demais dados constantes da sua identificação, bem como seu endereço, pela autoridade que o surpreender, sendo "vedada sua condução à delegacia", com a remessa posterior dos dados ao juiz competente (art. 24).
Além do procedimento simplificado, já consagrado por aquela lei, tanto o promotor de Justiça tanto quanto o acusado, se for primário, poderão requerer a suspensão do processo. Evita-se com isto a perda da primariedade.
Aos olhos de uns o projeto aprovado parecerá tímido porque deveria descriminar por inteiro a conduta do usuário, sem sujeitá-lo a nenhum dissabor como o do confisco da droga, submissão ao processo e eventual condenação.
Outros, ao contrário, dirão que o projeto é "leniente" com o usuário e, assim, enfraquece o combate ao tráfico. A estes cabe advertir do absurdo que representa utilizar-se do cidadão como instrumento para a consecução de uma política. Tanto que o voto do relator, deputado Ursicino Queiroz, é expresso ao hostilizar a possibilidade de o usuário vir a ser "torturado na delegacia, como meio de a autoridade policial chegar até os traficantes".
Depois, vale lembrar, o Brasil, no período autoritário, já experimentou uma política dura de drogas contra o usuário quando, em 1968, com base no AI-5, modificou-se o disposto no revogado art. 281 do Código Penal e atribuíram-se penas idênticas a usuários e traficantes. O resultado de uma tal política não foi a diminuição do número de usuários nem a redução do tráfico.
As influências do movimento hippie e da contracultura, entre outras, falaram mais alto. Por isso, hoje, tem-se como certo que mais importante do que a repressão penal, que nessa área tem escassa eficácia intimidativa, é a implantação de programas de prevenção com atuação motivadora. É a chamada prevenção positiva.
Mas para os que esperavam a descriminação ou mesmo a legalização, vale lembrar que o projeto, além de traduzir o sentimento hoje majoritário da população, afirmando a proibição do uso de drogas, realiza outra aspiração com a minimização da estigmatização do jovem usuário. É, de fato, uma solução de compromisso, que procura, com sabedoria, harmonizar duas tendências: a repressiva e a não marginalizadora.
A proposta legislativa é desafiadora e auspiciosa. Obriga-nos a romper com a idéia de que a pena é só cadeia e destruição da vida pessoal e, de outro lado, remete-nos à necessidade de refletir sobre estratégias diferenciadas na prevenção às drogas.

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