São Paulo, quinta-feira, 28 de dezembro de 1995
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Mamonas

OTAVIO FRIAS FILHO

Muitas crianças pediram e ganharam, neste Natal, o disco dos Mamonas Assassinas. O rock nacional tem evoluído tão rapidamente que nem todos os pais conseguem acompanhar os últimos lançamentos. Mas isso não é problema para os Mamonas, que conseguiram escandalizar numa época em que se acreditava que o escândalo moral estivesse extinto. Todo mundo já ouviu falar.
Tomar conhecimento do trabalho dos Mamonas em meio ao zumbido pop das ruas, porém, é muito diferente de escutar o disco com atenção, ler as letras, ver as crianças cantando junto como se fossem médiuns de uma mensagem a que estão completamente alheias. É no mínimo uma experiência pedagógica, ou antipedagógica, para pais e mães.
Não que as crianças sejam inocentes. Todo o acachapante sucesso dos Mamonas se baseia no desejo das crianças, permanente, obsessivo, de chocar o mundo adulto. Elas compreendem pouco das letras, mas o bastante para saber que tratam da zona proibida, da região do escatológico e do sexual, anatomicamente próximos, reunidos também no fato de só virem à luz do dia por meio do humor.
Nem se trata de inconsciente, não é preciso ir tão longe. As crianças raciocinam com os meios a seu alcance, mas exatamente como nós. Desde muito cedo notam, além do escandaloso tabu da nudez, que os banheiros, por exemplo, são divididos em homem e mulher, com todas as conotações implicadas. Há algo de suspeito no mundo.
O sucesso dos Mamonas, à sua maneira, é o eco das velhas perguntas sexuais que as crianças agora cantam, numa provocação ostensiva, depois de terem sido levadas a um frenesi de ansiedade "pré-sexual" pelo exemplo dos adultos, pelos anúncios, pela moda, pelos programas no estilo Xuxa, pela própria campanha de prevenção da Aids.
A estratégia da produção executiva, digamos, do grupo, é arar no último terreno virgem, escandalizar o último público ainda escandalizável. Não as crianças, por mais que a condição de fã dos Mamonas possa aumentar-lhes a cultura sexual, mas os adultos, atingidos num segundo impacto, quando as crianças saem repetindo as músicas por aí, como num filme de ficção-científica ou de exorcista.
O manancial das músicas é tudo o que houver de impuro, de proibido, de incorreto: preconceitos de classe e de região, tratamento sarcástico dos "desvios" da conduta sexual, até piadas obscenas de português. A crueza com que os Mamonas abordam seus temas, embalados em paródias de músicas famosas, muda as fronteiras do que é verbalmente lícito e extingue qualquer resquício de censura na matéria.
Exatamente quando o comportamento incorreto começa a ser mais duramente reprimido, no âmbito particular, ele se legaliza no âmbito público, para efeitos recreativos, a título de que é só de brincadeira. É isso o que permite a Madonna, por exemplo, brincar de ser estuprada num videoclipe; isso o que torna os Mamonas e seu liquidificador de palhaçadas inofensivos, aparentemente.

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