São Paulo, sexta-feira, 29 de dezembro de 1995
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Ensaio sobre a mulher e o cinema é lançado no Brasil

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

No auge do movimento feminista, o mercado editorial brasileiro não se interessou pelos estudos pioneiros de Molly Haskell e Joan Mellen sobre a mulher no cinema. Agora, em pleno refluxo feminista, chega até nós, com 12 anos de atraso, o célebre ensaio de E. Ann Kaplan, "A Mulher e o Cinema".
As duas primeiras citadas vasculhavam a tela com lentes sociológicas, ao passo que Kaplan, seguindo uma tendência dos anos 80, abastece suas análises na horta da semiologia, do estruturalismo e da psicanálise. Algumas feministas interessadas em cinema talvez preferissem ver em nossas livrarias os trabalhos de Laura Mulvey, Claire Johnston, ou mesmo de teóricas surgidas depois de Kaplan, como Annette Kuhn ("Women's Pictures"), Kaja Silverman e Teresa de Laurentis ("Alice Doesn't"), mas acontece que nenhuma delas produziu um livro tão acessível, propedêutico e didático como o da professora da Universidade de Rutgers e frequente colaboradora da revista "Jump Cut".
Em todo caso, não custa alertar: Kaplan não escreve para os leitores de "Première" e "Set". Mas até estes, desde que tenham saco para suas ocasionais concessões ao jargão acadêmico ("a nível de", "sistema representacional", "enquanto mulher" etc), encontrarão pouca dificuldade para atravessar seus capítulos fundamentais. Pois, como já insinuei, a vocação da autora para a pedagogia é quase tão grande quanto a sua dívida com Freud, Lacan & cia.
Dotada de apêndices e glossários, "A Mulher e o Cinema" é uma obra de referência básica que, por isso mesmo, merecia editoração mais acurada, atenta a certas omissões (os ensaios de Christian Metz, citados por Kaplan, saíram no Brasil), mancadas (filmes europeus com títulos em inglês) e derrapagens da tradutora ("Win" Wenders; "Andrej" Wajda; "taxada" em vez de "tachada", "aonde" em vez de "onde").
Ver o cinema pela ótica feminista significa reconhecê-lo como uma forma de arte (ou entretenimento) patriarcalista. Ou seja, o cinema é comandado pelo olhar masculino, que elabora as imagens da mulher de modo a torná-las objeto daquele olhar e, por tabela, do desejo masculino. Feita para funcionar como atrativo erótico, a mulher deve sacrificar seu desejo em favor do desejo masculino, submetendo-se às suas leis de dominação, o que só favorece a manutenção do patriarcado. Resumindo: no cinema tradicional, a mulher é relegada à ausência, ao silêncio e à marginalidade. Sobretudo nos filmes de ação, escancaradamente masculinos.
Para melhor compreender esse, digamos, complô machista (Kaplan não usa essa expressão grosseira), o instrumental recomendado é o mesmo que indicam para nossas desordens mentais. Segundo Kaplan, "a utilização da psicanálise para desconstruir os filmes hollywoodianos possibilita-nos ver claramente os mitos patriarcais que nos posicionaram como o Outro (enigma, mistério), eterno e imutável".
Com o que aprendeu estudando psicanálise e semiologia, Kaplan desconstrói quatro emblemas do cinema clássico: "A Dama das Camélias", "A Vênus Loura", "A Dama de Xangai" e "À Procura de Mr. Goodbar". Esta é a parte mais interessante do livro, quando nada porque os filmes feministas independentes sobre os quais se debruça ou nunca foram exibidos aqui (à exceção de "Os Anos de Chumbo", de Margarethe Von Trotta, erroneamente identificado como "Marianne e Julianne") ou só valem pelo caráter experimental e militante.
O melodrama é uma espécie de nó górdio das ensaístas feministas. Se, por um lado, ele desnuda "as restrições e limitações que a família nuclear capitalista impõe à mulher"; por outro, educa as mulheres a aceitar essas restrições como inevitáveis. O gênero, visto por Laura Mulvey como uma forma feminina que age como corretivo para os gêneros que celebram a ação masculina e se enobrece ao "explorar emoções recônditas, amarguras e desilusões bem conhecidas das mulheres", exerce um fascínio sobre as feministas que elas não conseguem explicar. Kaplan não é uma exceção. Prazer masoquista? Cala-te boca.

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