São Paulo, sábado, 30 de dezembro de 1995
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Brasil precisa trocar de sexo, não de regime

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Quando terminou o século passado, os jornais brasileiros usavam e abusavam das alegorias, e era comum ver a pátria quebrando algemas. Os ilustradores de nossas folhas quebraram algumas a granel para celebrar a Independência, depois a Lei Áurea e muitas outras foram ainda rompidas quando se proclamou a República.
Me lembrei dessas algemas, que começaram a ser empurradas dos jornais pela fotografia no começo deste século, quando vi outro dia, no pontal do Paranapanema, a sem-terra Diolinda Alves de Souza sendo algemada e levada para o presídio de Carandiru.
O Brasil confunde a cabeça da gente. Em que século, afinal, estaremos vivendo? Foi o que perguntei a mim mesmo ao ver o retrato da moça (25 anos, mãe de um filho de 2) chorando, punhos algemados, como se fosse um assassino perigoso.
A verdade é que continuamos alegóricos, só que com o sinal trocado: conseguimos fazer uma alegoria triste, recondicionando, para uso de Diolinda, velhas correntes de escravos.
E concluí que se deste ano de 1995 ia guardar na memória, como símbolo, Diolinda posta em ferros por desafiar fazendeiros-grileiros, não estava fazendo nada de novo, já que guardei na lembrança, como símbolo dos últimos dias de 1994, foto da senadora Benedita da Silva, no morro do Chapéu Mangueira, enfrentando um soldadinho furioso de ser interpelado por uma crioula só porque estava revistando, durante uma batida do Exército, tudo quanto era morador: cara contra o muro e mãos para o alto.
Nas fotos então publicadas sentia-se bem a altivez, a energia de Benedita da Silva, mas o acontecimento em si caberia melhor em alguma alegoria de Angelo Agostini, o grande ilustrador de jornais do Segundo Reinado.
Agostini faria também algum belo desenho diante do fato altamente alegórico de que todo o mundo é chamado a opinar sobre o Sivam e o controle que se pretende estabelecer sobre a Amazônia; mas quem pesquisou, a respeito, a opinião que terá a senadora pelo PT Marina Silva, que representa o Acre, que trabalhou como seringueira ao lado de Chico Mendes?
Bem. Não me acusem de ser puramente do contra neste artigo em que digo adeus a 1995 e no qual deveria estar distribuindo sorrisos e votos de feliz Ano Novo. Estou anotando, como fato positivo, a participação, no cenário social e político do país, das mulheres, e não apenas como vítimas. E estou pensando, sobretudo, nas mulheres do povo, trabalhadoras, como as três que citei até agora.
Isto não significa que me pareça menos válido o esforço de deputadas como Rita Camata ou Marta Suplicy, ou da deputada que teve meu voto, Maria da Conceição Tavares. Ou da (segundo me informam) futura candidata a prefeita do Rio, Yvonne Bezerra de Melo, autora do belo livro "As Ovelhas Desgarradas e Seus Algozes, em que descreve seu comovente e eficiente trabalho em favor dos meninos de rua no Rio.
Mas o que me alegra sobretudo é a emergência, como no caso de Diolinda e seu bracelete de algemas, de mulheres oriundas das classes realmente desprotegidas, o que alarga o campo feminino em nossa vida pública.
Porque o que eu estou realmente querendo dizer neste fim de ano é que o que ainda podemos tentar no Brasil é ir passando o poder para as mulheres: o homem aqui não deu certo não. Reparem como já experimentamos todas as formas possíveis de governo que o homem moderno conhece.
Já fomos colônia, parte do reino de Portugal, reino independente, república duvidosa, ditadura varguista, parlamentarismo, ditadura militar boçal, ditadura militar gradualista, governo vice-presidencial, democracia corrupta, democracia ainda difícil de adjetivar, como a atual. Não nos sentimos à vontade em nenhum dos regimes.
Por outras palavras, se levarmos em conta a vastidão da terra que o barão do Rio Branco nos legou, o resultado tem sido lastimável. Continuamos, ao fechar 1995, uma choldra, como dizia de Portugal o Eça de Queiroz. Ao que parece, portanto, nosso erro não está no regime que adotamos ou viermos a adotar e sim nos homens, já que são eles que exercem o poder. Somos um matriarcado que ainda não se descobriu.
Para cúmulo dos cúmulos permitimos que a Argentina (logo a Argentina) nos levasse daqui, como se roubasse a taça do tetracampeonato, o "Abaporu" de Tarsila do Amaral.
Pintado poucos anos antes da crise de 1929, o "Abaporu" surgiu como símbolo do Brasil novo, feminino, que se esperava que fosse inaugurado naquele tempo. "Abaporu" descende da "Negra" que Tarsila pintou em 1923 e que serviu de capa ao livro "Le Formose" de Blaise Cendrars.
A "Negra" tinha encantado Fernand Léger, com quem Tarsila estudou pintura em Paris. O precioso livro de Alexandre Eulálio "A Aventura Brasileira" de Blaise Cendrars (Quíron-MEC, 1978) conta a história maravilhosa do Brasil que parecia estar virando grande país, graças ao café e à "locomotiva paulista".
Era o Brasil da antropofagia de Oswald de Andrade, que foi marido de Tarsila e o autor de tantas coisas, entre as quais um dos maiores trocadilhos que já foram criados neste país hamletiano: "Tupi or not tupi". O delirante Blaise Cendrars, desde que nos conheceu em 1924, achava tudo maravilhoso aqui. Vivia repetindo "quelle merveille!" diante de índios, caboclos, palacetes e fazendas de São Paulo, igrejas barrocas de Minas. Entrevistado por Sergio Buarque de Holanda para o "O Jornal", Cendrars declarou que "o futuro do homem branco está na América do Sul".
Cendrars, no fim, passou a admirar até Febrônio Índio do Brasil, um medonho assassino de meninos em meio a rituais de magia. Ao visitar, na companhia de seus elegantes hospedeiros de São Paulo, as cidades barrocas de Minas, deleitou-se com a arquitetura e a estatuária do Aleijadinho e com muita coisa mais.
Na cidade de Tiradentes, por exemplo, o grupo parou diante de uma cadeia cuja cela se debruçava sobre a rua. Dois dos prisioneiros conversavam, pelas grades, com os passantes, e Cendrars perguntou a um dos guardas que crime tinham aqueles dois cometido. A resposta foi que tinham matado um homem e "depois... comeram... arrancaram o coração e comeram".
Tarsila comenta, no seu diário de viagem, que Cendrars ouviu aquilo, achou estupendo e exclamou: "Quelle merveille!". Imagino que, naquele momento, o poeta e viajor francês passou a achar que a tal antropofagia de Oswald de Andrade não era pura literatura.
Adeus, 1995. Adeus, "Abaporu".

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