São Paulo, domingo, 31 de dezembro de 1995 |
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O retorno de um fantasma
SÉRGIO AUGUSTO
Em compensação, o ano que logo mais termina trouxe de volta aquilo que os editoriais costumam chamar de "fantasma da censura". Não a censura oficial, desabrida e sem-vergonha, meio em recesso até na América Latina, mas aquela outra, por sinal bem fantasmática, que se esconde por trás de desculpas esfarrapadas e leréias forenses. Entre os vários casos que me dei ao trabalho de coligir, dois me pareceram exemplares. Um de fora, outro local; ambos ainda em progresso. O de fora foi matéria de capa da última edição do semanário "The New Republic" e envolve a figura de Sigmund Freud. O local, envolvendo a figura de Garrincha, motivou há dias um abaixo-assinado de intelectuais, jornalistas e homens públicos, publicado nos principais jornais do país. O caso brasileiro é bem mais clamoroso que o americano, na medida em que não se beneficia das atenuantes da ambiguidade. A Biblioteca do Congresso, em Washington, cancelou na semana passada uma exposição intitulada "Sigmund Freud: Conflict and Culture". Desculpa da casa: faltou verba para montar o evento. Mentira, replica um manifesto assinado por 50 psicanalistas, intelectuais e jornalistas americanos. Segundo estes, a mostra teria sido adiada "sine die" por causa de pressões de grupos antifreudianos, avessos a qualquer manifestação neutra ou favorável ao pai da psicanálise. Freud anda meio por baixo na América do Norte. Perseguido pela mídia (volta e meia perguntam se suas idéias já morreram) e pelo custo de vida (sai psicanalista, entra Prozac), tampouco tem levado boa vida nas mãos daqueles que, sem ele, não existiriam. Jeffrey Masson não é o único apóstata do freudismo em atividade na América. Outros fazem carreira contestando o mestre, em especial sua teoria sobre a sedução, e até suas especulações sobre Leonardo Da Vinci já levaram chumbo de teóricos gays. O estudo de Freud sobre a natureza e as origens da homossexualidade de Da Vinci tornou-se um marco não só da teoria psicanalítica mas também da arte de biografar. E aqui topamos com mais um vínculo entre o escândalo da Biblioteca do Congresso e o que ameaça banir de todas as livrarias a biografia de Garrincha, "Estrela Solitária", escrita por Ruy Castro. Só ameaça. Na prática, o advogado que dessa cruzada se incumbiu não tem meios para custear a apreensão de todos os exemplares do livro em todas as livrarias do país. Nenhuma apreensão pode ser feita sem a presença de um oficial de Justiça, pago pela parte interessada, assim como o transporte do material apreendido. Isso explica por que ainda é possível encontrar o livro nas boas casas do ramo. Até quando, ninguém sabe. A notícia de um livreiro multado pode amedrontar aqueles que ainda não foram e talvez nunca fossem visitados pelo advogado dos familiares de Garrincha, induzindo-os a devolver o seu estoque de "Estrela Solitária" à editora ou, diretamente, à polícia. Triste sina a de Garrincha. Em vida foi vítima de um leguleio chamado Dirceu Rodrigues Mendes, que instruiu a mulher do jogador a acusar Elza Soares de explorar seu marido e de obrigá-lo a comprar uma mansão para ela, enquanto sua família passava necessidades. Ingênua, para dizer o mínimo, dona Nair caiu na conversa do rábula, que, conforme se comprovou, só queria ganhar dinheiro à custa do jogador. Maiores detalhes sobre esse lamentável episódio no livro do Ruy Castro. Um clone do dr. Dirceu entrou na vida de dona Nair, e ela caiu de novo na lábia da serpente. Que em seu ouvido soprou: o autor da biografia de Garrincha não pediu autorização para escrevê-la e invadiu a intimidade e a vida do jogador e de seus familiares. Com a aprovação da viúva do jogador, o esperto advogado impetrou uma liminar contra o livro, derrubado por um desembargador, mas finalmente acatada por outros dois juízes, deixando sempre claro que está aberto a negociações. Ou seja, a dignidade (ou o que diabo estejam pleiteando os familiares de Garrincha) tem um preço. A queixa chega a ser ridícula de tão inconsistente. Biografias não necessitam de autorização e sua função primordial é invadir a intimidade das pessoas, sem complacência. Nos países civilizados, alguns biógrafos submetem seu trabalho ao julgamento das partes interessadas, que podem condicionar seu imprimátur à supressão de trechos ou capítulos inteiros, resultando da aceitação dos cortes o que chamam de biografia autorizada. Se o biógrafo recusar os cortes, a lei lhe assegura que sua obra seja publicada sem problemas -e aí temos uma biografia não autorizada. Processo? Só se ficar comprovado que ela contém mentiras e calúnias sobre o biografado ou qualquer pessoa nela mencionada. Nada do que está escrito em "Estrela Solitária" tem por base a mentira. Já o mesmo não pode ser dito dos que advogam a sua apreensão. Uma das filhas de Garrincha declarou à repórter Sandra Moreyra, da TV Globo, que nem ela, nem sua mãe, nem suas irmãs haviam lido o livro. Se não leram, do que se queixam? Se este caso não tiver o desfecho que a lógica, o bom senso e os mais elementares preceitos jurídicos prevêem, ficaremos todos à mercê de uma jurisprudência cujos danos são difíceis de estimar. O mínimo previsível é o desaparecimento, entre nós, do gênero biográfico. E a consagração da chicana como expediente jurídico. Texto Anterior: Coluna Joyce Pascowitch Próximo Texto: A MALDIÇÃO DO FARAÓ Índice |
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