São Paulo, domingo, 31 de dezembro de 1995
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A MALDIÇÃO DO FARAÓ

GIANNI RIOTTA
ESPECIAL PARA "CORRIERE DELLA SERA"

"Miss Doris Carnavon? Miss Doris Carnavon?" O camareiro do Hotel Regency repetiu mais uma vez o nome e depois, bufando, chateado, voltou ao hall. Um senhor alto e magro impediu-lhe a passagem: "Rapaz, me dê esse telegrama; eu o entregarei a miss Carnavon". O camareiro ajeitou seu chapeuzinho. "O senhor é um parente, Monsieur?" O cavalheiro colocou-lhe no bolso duas notas e pegou a folhinha amarelada. "Jamais indague sobre árvores genealógicas, filho, jamais." "É claro que não, Monsieur." O rapaz se chamava Felix Krull, era esperto e foi-se sem mais delongas.
Robert de la Grive acendeu um charuto Romeo y Julieta, torceu o nariz, "muito doce", abriu o telegrama e leu: "Baratas fora de temporada. Stop. Hora de limpar o porão. Stop. O défilé chez Diotima será esta noite às 20h. As outras te encontrarão logo depois". Robert amassou o telegrama, sacudiu a cinza do charuto e saiu no bulevar ensolarado. Ah, Paris. Paris da sua juventude, tudo parecia tão fácil e tão próximo. E agora? Marianne saíra de casa com telas e baús. Estava realmente a fim de continuar com essa vida de intrigas?
Não. "Uma última missão", disse para si mesmo, umedecendo o charuto, "e depois aceitarei aquele cargo na Polinésia. Veremos o que acontece."
Olhou o relógio, chegara a tempo. Apalpou os bolsos internos, os charutos estavam em seu lugar, a Glock também. A Glock tranquilizava-o, uma pistola sem a elegância da Beretta e sem o mito da Colt, mas eficaz, uma Volkswagen das armas de fogo.
As estudantes saíram em grupos pela escadaria do Instituto de Estudos Clássicos, dois bedéis resfriados mostraram-se por um momento, e então ela apareceu. Sem dúvida, era bonita. Os cabelos louros entrelaçados sobre um rosto pálido, a saia curta balançando sobre pernas de atleta. Havia porém em seu rosto uma tensão, uma palidez que impressionava até à distância e fazia com que qualquer homem pensasse: eis uma mulher pela qual é perigoso apaixonar-se.
"Justo o meu tipo", pensou Robert, "pelo menos em outros tempos. Mas agora tenho que ir." Atravessou a avenida em direção à moça, aproximou-se e perguntou em voz baixa: "Miss Doris Carnavon?".
"Sim?"
"Se importaria de vir comigo?"
"Sinto muito, mas acho que não nos conhecemos."
"Senhorita, venha comigo assim mesmo, por favor."
"Vá embora, ou chamo um flic (tira)."
"Tenho uma pistola e estou disposto a usá-la." Deu-lhe o braço e Doris seguiu-o tranquilamente. Robert de la Grive parou um táxi, dirigido por uma senhora argelina, e disse somente: "Rue de Fleurus, 10". Lá, no velho apartamento de Graham Ramsey, marcara um encontro com Antonio Vitali e, se sua mensagem fora entregue à agência "Cairo World News, com Pereira também. Havia uma chance, uma pequena chance de que a trama não desse em nada e ele pudesse realmente partir para a Polinésia. Adeus Marianne, boa sorte.
No caminho, Doris não abriu a boca. Robert deu uma boa gorjeta à motorista do táxi e depois ficou remexendo nas chaves, como acontece quando se abre a casa de outros. Abriu a porta, deixou que Doris Carnavon entrasse primeiro, fechou a porta e soltou um grito de terror.
"Graham! Você! Mas o que aconteceu? Quem foi?", gritou Robert.
Graham Ramsey fitou-o com uma expressão de medo. Contraiu boca e pescoço e balbuciou: "Os Outros são... é... Diotima tem... o Saber..." Um último espasmo enrijeceu-o e morreu. Do pescoço, pendia uma gargantilha de ouro com a inscrição "Os cavaleiros de amor".
Robert de la Grive olhou com ódio para Doris Carnavon.
Ela, servindo dois Bitter Campari, perguntou-lhe: "Soda?".
"Foi você. Foram vocês, malditas."
"Não quer soda? É uma pena, estragou o Campari." E engoliu de um gole o licor, escarlate como suas unhas.
"Sente-se", ordenou Robert. A Glock agora tremia-lhe na mão, demais para ser realmente uma ameaça. Doris cruzou as pernas bronzeadas.
"Agora fale. Diga tudo", ordenou Robert.
"O que há para dizer? Parece que você já entendeu. Parabéns."
"Por que vocês mataram Belzoni e Ramsey? Onde querem chegar, vocês, Agrafoi? Onde estão os Outros?"
"Quantas perguntas. Não vê que estou bebendo? E quem disse que Belzoni morreu? Aquele cretino. Tive até que fingir amá-lo, enquanto aquele porco de Ramsey babava em cima de mim... puah!"
"Malditas. Felizmente, Vitali intuiu que a intriga levava a você. Quando ele chegar, iremos ao défilé de Diotima e acabaremos com vocês..."
"Vitali? Mas aquele intrometido do Vitali já chegou, meu caro...", disse Doris. Sem alterar-se, entrou no quarto de dormir e indicou um vão escavado na parede. Lívido, o crânio calvo gotejando de suor, Antonio Vitali tinha o olhar fixo no vazio e repetia, espumando: "Grande Ra, me proteja, nasci sem sorte..."
Robert virou-se enfurecido para Doris: "O que lhe deram?"
"Burundanga. Uma antiga droga boliviana. Quem a masca se torna um escravo. Nada mal, não é? Temos um ranch que produz várias toneladas disso por ano. Com Belzoni, tivemos que usar uma zarabatana e uma agulha, mas normalmente a fabricamos em bolinhas. Quer uma?", e ofereceu-lhe um bombom vermelho-cereja.
Robert deu um pulo para trás. A Glock agora tremia tanto que ele precisou segurá-la com as duas mãos. Sentiu calor. "Vamos sair, vamos", gaguejou. Arrastou Doris para a rua. Faltavam 15 minutos para as oito. Um táxi os esperava. "Ao ateliê Diotima, rue des Pyramides, rápido."
Robert de la Grive manteve os olhos fixos em Doris, como se receasse ser hipnotizado e reduzido ao mesmo estado do pobre Vitali. Talvez por isso não percebeu que o táxi era dirigido novamente pela argelina. Em vez de parar em frente ao portão do ateliê, a mulher pegou uma entrada secundária e entrou na alameda interna de uma mansão, enquanto o pesado portão de ferro batido fechava-se atrás deles.
"Mas para onde me trouxe?", perguntou. A argelina resmungou: "Desce, cretino. Pensou que deixaríamos mademoiselle Doris sem escolta?". Robert de la Grive desceu. Doris Carnavon já estava à sua frente. Seu sorriso era vermelho-carmesim, como o punhado de bombons que lhe oferecia, persuasivamente: "Coma. Esqueça tudo e nos será útil".
Robert fez um movimento para obedecer, mas pareceu desmaiar e caiu no chão de cascalhos branquíssimos. A argelina tentou segurá-lo. De um salto, Robert se pôs de pé e jogou-a no chão. Com dois pulos, saltou no viveiro dos papagaios, dali para um sótão e, através de uma clarabóia, sumiu dentro do ateliê. "O Golpe da Gaivota", sorriu Doris, "ainda funciona".
"Não irá longe. Os Agrafoi já chegaram. Vamos logo, as outras esperam", disse a argelina. E as duas mulheres entraram no ateliê Diotima.
Uma sala escassamente iluminada por umas poucas velas acolhia os Agrafoi, vestidos de hábitos e capuzes imaculados. No tapete, que no passado vira desfilar as modelos, reluziam nove monitores em cores. O rosto de duas mulheres ocupava as telas e uma voz salmodiava: "Agrafoi. Chegou a hora. A escrita acabou. Amanhã será lançado o programa Agraf, que permitirá que todos os computadores sejam usados sem os comandos do teclado. Especulando em Wall Street, graças ao tesouro que Thamus nos deixou por herança, conseguimos levantar ao máximo o preço do papel. Os jornais fecham. Os livros são demasiado caros. Lembrem-se, a Era da Fé e dos Milagres acabou com Gutenberg, quando para crer bastava ler a Escrita. Lembrem-se: Sócrates, no "Fedro, de Platão, diz que a Escrita está à disposição de todos e que qualquer um pode aproximar-se de uma página escrita. A Escrita é o fundamento da Democracia. Sem Alfabeto, voltaremos à Aristocracia, à era da Fé e dos Milagres. Nossa conspiração vencerá. Antes, porém, escolheremos em nossas fileiras uma última fiel para completar a trindade dos Outros. Doris Carnavon, dê um passo à frente".
Doris caiu de joelhos, enquanto os Agrafoi batiam a mão no peito, lúgubres. "Purifica-te e junta-te a nós, Doris Carnavon", disse a voz ao monitor. As imagens das duas mulheres desapareceram dos vídeos, as velas se apagaram como por uma lufada, e na sala se fez uma total escuridão.
Robert de la Grive, contundido e sujo, conseguira assistir à cena de uma vigia. E agora? Não tinha a menor idéia de onde estava e não podia dar o alarma. Ouviu um ruído, um rato?, virou-se, empunhando a Glock. Um fósforo crepitou na escuridão, e o halo amarelado iluminou o espesso bigode de um egípcio.
"Major Safar, Serviço Secreto do Cairo. Muito prazer, Mister de la Grive. Aquelas lunáticas resolveram governar o mundo. Pregam que os homens submeteram as mulheres graças à escrita: sem escrita -juram- o matriarcado dominará. Usam, para seus objetivos, aqueles coitados dos Agrafoi. Um verdadeiro golpe mundial, graças à Bolsa, aos Computadores com software sem comandos (o programa Agraf) e à Ignorância. Não faça barulho. Se apanham um macho, colocam-lhe aquele maldito colar em volta do pescoço. Os cavaleiros. Mumificam-nos e pronto."
"Como aconteceu com aquele coitado da pirâmide e com Ramsey?"
"Sim. A vítima da pirâmide era o jornalista intrometido do 'Clarion'. Queria o furo da descoberta do túmulo de Thamus, mas foi pego pela argelina. Uma embalsamadora impiedosa."
"Mas então os Outros são as Outras? Mulheres que querem dominar o mundo? Será possível? Será que o senhor não é um misógino, major?" Na escuridão, Robert pensou em Marianne, seu amor perdido.
"Não esqueça o que disse lorde Carnavon: 'Thamus, Grande Mãe de todas as Múmias'." Foi o primeiro de quem suspeitei, por causa de seu papo furado sobre Thamus Mãe. Doris está convencida de ter provas de que Thamus era, na verdade, uma mulher. Transformou o pai em seu súcubo, convencendo-o de que a Memória prevalecerá sobre a Escrita. Agora, só há um modo de neutralizar as Outras. Escrever sobre elas. Rios de tinta, pior que o alho contra os vampiros...". Safar sorriu.
"Isso mesmo, major. Mãos ao alto, por favor, o senhor também, De la Grive, e joguem as armas. Antes de convidá-los para um lanchinho à base de burundanga, posso lembrar-lhes Diotima, a sábia que foi ridicularizada por Sócrates no "Banquete? Graças à Escrita, os homens tornaram muda sua Memória. Agora é a sua vez. Eliminaremos quem se opuser, homem ou mulher. Nosso saber vencerá", disse Doris Carnavon, triunfante.
Ao seu lado estavam a argelina e uma mulher velhíssima, de cabelos brancos que chegavam até o chão. Atrás, as costas encapuzadas dos Agrafoi.
Enquanto isso, no Hotel Regency, um senhor gorducho suplicava ao camareiro Felix Krull: "Mas não sabe mesmo aonde foi De la Grive? Estou desesperado".
Felix Krull esfregou os dedos, pedindo gorjeta e, tendo-a recebido, confessou: "Sr. Pereira, recuperei o telegrama que seu amigo jogou fora. Tem um endereço". Pereira leu o telex, enxugou o suor e apalpou a bolsa que tinha debaixo do braço. A moldura do retrato de sua mulher tinha sempre o efeito de tranquilizá-lo. Pediu uma limonada e refletiu. A última palavra seria dele.

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