São Paulo, domingo, 5 de fevereiro de 1995
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A paixão de um intelectual-ator

JOÃO PACHECO DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Algumas vezes os intelectuais administram e contam a sua vida como se apenas escrevessem livros, fizessem pesquisas ou atuassem como professores. Sua história pessoal se anula face ao destaque monopolizador dado as suas obras, as quais são sempre consideradas como totalidades coerentes que constituem uma página dentro da história das ciências. As teorias ou paradigmas valem então muito mais do que uma biografia, materializando uma racionalidade que caminha por si própria, algumas vezes até prescindindo do papel do herói fundador.
Darcy Ribeiro não se enquadra de forma alguma nesse padrão e seria injusto tentar avaliar nessa via a sua contribuição à antropologia do Brasil. Injusto porque ele jamais pensaria ou narraria a sua vida desse modo e equivocado pela multiplicidade de campos —antropologia, educação, literatura— em que sua atividade se insere.
Diferente de muitos antropólogos eminentes (especialmente de Lévi-Strauss, a quem —sem modéstia— Darcy em reiteradas vezes costumava contrapor-se) a sua obra não é um sistema teórico integrado, sua produção intelectual transita por diferentes disciplinas e as suas intervenções práticas não têm uma importância menor nem devem ser dissociadas de seus escritos. Menos que um perfil de teórico ou criador de uma escola de pensamento, Darcy é um exemplo de intelectual/ator, em uma associação entre teorias e pesquisas com ações políticas de transformação, sempre acompanhadas pela elaboração de um complexo e apaixonado discurso justificador.
Para pensar a sua presença na antropologia brasileira é preciso ser menos biográfico e mais analítico, falando sobre sua atuação em pelo menos cinco diferentes posições: 1) como etnógrafo; 2) como o estudioso do processo de integração das populações indígenas; 3) como o idealizador de um museu de novo tipo; 4) como o formulador de uma nova política indigenista, e por fim 5) como autor de uma representação geral e amplamente difundida sobre o índio do Brasil. Alguns desses papéis inclusive implicam resgatar atividades nada habituais ao convencional padrão acadêmico mundial.
Como etnógrafo, ao início de sua carreira, Darcy realizou trabalho de campo com os índios Kadiwéu, em Mato Grosso, e os recém-contatados Urubu-Kaapor, no Maranhão, daí resultando, além de outros artigos e ensaios, dois livros importantes na bibliografia sobre as culturas indígenas das terras baixas da América do Sul: Religião e Mitologia Kadiwéu (1950) e Arte Plumária dos Índios Kaapor (1957).
Este último trabalho em parceria com sua mulher e colaboradora em várias outras pesquisas, a antropóloga Berta Gleiser Ribeiro, já aponta uma linha de preocupação com arte e cultura material que irá bem mais tarde desaguar na publicação da Summa Etnológica Brasileira (com três volumes, editados em 1986), uma iniciativa que pretendia atualizar o enorme esforço de coleta e sistematização de dados realizado por Julian Steward, no clássico "Handbook of South American Indians" (1946-48).
As suas análises sobre o processo de integração do índio na sociedade brasileira constituíram-se, juntamente com os trabalhos de Roberto Cardoso de Oliveira e Eduardo Galvão, nos pilares da chamada "teoria do contato inter-étnico", contribuição importante e original dos pesquisadores brasileiros para os debates sobre aculturação, mudança cultural e situação colonial, que nas décadas de 40 a 70 envolveram extensamente antropólogos norte-americanos, ingleses e franceses. A sua contribuição é muito relevante especialmente no que concerne a focalizar com atenção a categoria genérica de "índio" e apreender o caráter determinante que o assumir ou atribuir esta identidade pode criar para os próprios índios e os brancos.
Nesse sentido seria correto dizer que Darcy antecipou a crítica (feita pela antropologia política e bem mais tarde pelos interpretativistas) a uma etnografia atomizada, lembrando que a explicação antropológica não pode limitar-se aos componentes meramente locais nem prescindir da consideração do status político-jurídico dos indivíduos e grupos que são os portadores e atualizadores de uma cultura.
É ainda em seus muitos artigos e conferências que é dito com bastante clareza que a assimilação dos povos indígenas no contexto atual do país nunca se dá completamente, permanecendo aquelas coletividades —mesmo que integradas economicamente à sociedade nacional e esvaziadas de características culturais específicas— com uma representação própria de sua singularidade, reportando-se ainda à identidade genérica de "índio".
Darcy foi também o idealizador do Museu do Índio, inaugurado em 1953 no Rio de Janeiro. A intenção originária, descrita em artigos e palestras, era de organizar "um museu contra o preconceito", mostrando aos moradores, as novas gerações e aos visitantes da então capital federal a inventividade, arte e sabedoria dos índios brasileiros. Em uma nítida preocupação política e pedagógica, Darcy investia na construção de uma opinião pública simpática à causa indígena, que viesse e apoiar o antigo SPI (Serviço de Proteção ao Índio) em suas lutas rotineiras por maiores recursos e poder político.
Há um outro aspecto no entanto que deve ser explicitado: na perspectiva de Darcy as coleções etnográficas formadas por antropólogos, assim como os próprios dados obtidos na pesquisa de campo (fotos, entrevistas, cadernos de anotações, etc) ou produzidos a partir desta (como os livros e acervos científicos) devem ser utilizados no benefício dos próprios índios.
Colocando-se inteiramente contra a crença na neutralidade da ciência, Darcy pondera —em consonância inclusive com o grupo de antropólogos e intelectuais latino-americanos que formulou o chamado Documento de Barbados (1971)— que o pesquisador não pode ser mais um agente colonizador, que escondido atrás da crença na neutralidade da ciência, carreie a cultura dos nativos para os seus livros, filmes e museus, não estabelecendo compromissos éticos e políticos com a possibilidade de livre continuidade das instituições e costumes que estuda.
Em sua linguagem direta e contundente Darcy dirá que o antropólogo não deve ser "o gigolô do índio", mas ao contrário precisa preocupar-se em desenvolver formas pelas quais o conhecimento por ele acumulado possa reverter para o próprio índio. Daí a sua ênfase em artigos mais recentes na necessidade de se criar no Brasil uma "antropologia da devolução", que permitisse aos povos indígenas apoiar-se nas pesquisas atuais para recuperar a sua memória histórica e a riqueza de suas formas culturais.
Foi enorme a influência de Darcy na definição das grandes linhas da política indigenista brasileira. Ingressando no SPI em 1947, ele absorveu muitas das idéias de Rondon e seus colaboradores, integrando-as com os ensinamentos da antropologia da época (o evolucionismo cultural norte-americano) e reapresentando-as em uma síntese própria, onde o pensamento do grupo rondoniano ganha novas cores.
O positivismo comtiano, ao qual se filiava Rondon, com suas facetas de cientificismo e conservadorismo, foi vivificado pelo relativismo antropológico e passou a admitir associações com a tradição romântica (tão grata aos sertanistas). Darcy cunhou a expressão "humanismo rondoniano", reinterpretando-o como um "indigenista" (segundo os padrões que se delineavam no contexto mexicano).
Antigas classificações meramente administrativas do SPI foram recuperadas como fases de uma sequência evolutiva (que vai dos índios isolados até os integrados, passando por aqueles em contato intermitente e permanente), passando a fazer parte do jargão antropológico e sendo posteriormente apropriadas pelo discurso legal. O Estatuto do Índio, projeto de lei aprovado em 1973, ainda em plena vigência dos governos militares, reflete em suas definições básicas muitas das idéias subscritas por Darcy.
A sua contribuição específica mais importante no entanto foi a elaboração (em 1954) de um projeto para a criação do Parque Indígena do Xingu. À diferença da antiga postura administrativa do SPI de escolher terras que seriam destinadas aos índios (estabelecendo as reservas, isto é, áreas reservadas), Darcy constrói uma argumentação sobre a existência de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios em virtude de seus usos e costumes, que devem ser identificadas (segundo critérios antropológicos) e reconhecidas pelo Estado, pois compõe o habitat daqueles povos e o único meio capaz de assegurar a reprodução adequada de suas culturas.
Na concepção de que as terras indígenas não são uma mera outorga administrativa, mas que constituem territórios habitados tradicionalmente por uma coletividade que pretende manter a sua diversidade cultural, está o fundamento dos atos e momentos mais importantes do indigenismo brasileiro.
Por último caberia falar da participação de Darcy em moldar a representação cotidiana dos brasileiros sobre os índios dentro da formação nacional. Um livro como "Os Índios e a Civilização" poderia ser colocado dentro de um conjunto seleto de obras que configuram, ao lado portanto de clássicos como "Casa Grande & Senzala" ou "Raízes do Brasil", referências básicas para o pensamento social brasileiro.
As informações e opiniões que sistematiza e veicula são hoje de ampla circulação e, repetidas ou alteradas por uma legião de comentadores e divulgadores, atingem uma faixa da opinião pública muito maior do que a de seus leitores diretos, servindo como inspiração e fundamento a muitas formulações sobre índios procedentes de especialidades as mais diversas.
Além de um grande número de artigos científicos e ensaios, dos seus romances e da sua atuação nos últimos anos como político (onde frequentemente continua a tentar seduzir para o seu indigenismo todos aqueles que o ouvem), haveria que computar centenas de palestras e entrevistas realizadas pelo país afora e também pelo exterior. Hoje na representação mais comum e difusa sobre o índio brasileiro existe muito mais da sua obra e da sua militância do que qualquer outro intelectual.
Bem mais que Gilberto Freyre ou Sérgio Buarque, Darcy sempre foi um propagador persistente e inteiramente convicto de suas idéias, um intelectual sempre militante, um formador de opinião.

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