São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 1995
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A INSÔNIA DA RAZÃO

MICHAEL JACOB

"A lucidez completa é igual ao nada"

Cioran - Infinitamente mais importantes. Santa Teresa de Ávila teve um papel muito grande em minha vida, fiquei transtornado com a leitura da biografia de Edith Stein... Sabe como ela se converteu? Um dia, ela chegou na casa de uma amiga filósofa e, como a amiga tinha lhe deixado um bilhete dizendo que chegaria mais tarde, Edith Stein se deparou, enquanto esperava, com a vida de Santa Teresa de Ávila, e ficou completamente tomada... É a origem de sua conversão.
Ora, em todos os artigos sobre Edith Stein os autores se admiram disso e acham o fato muito curioso, mas o ponto não é esse: Teresa de Ávila tem um tom que transtorna realmente. Evidentemente, eu não me converti porque não tinha vocação religiosa, mas Santa Teresa me ensinou muito, transtornou-me literariamente, mas o fato é que para ter fé é preciso nascer com ela... Eu posso passar por todas as crises menos pela fé, que é igualmente uma crise, mas uma forma de crise que não é a minha. Quer dizer que posso conhecer a crise, mas não conhecer a fé.
Pergunta - E os poetas?
Cioran - Os poetas me apaixonaram, claro. Mas existe também este fenômeno muito balcânico: o raté, quer dizer, o tipo muito dotado que não se realiza, que promete tudo e não cumpre as suas promessas. Meus grandes amigos na Romênia não eram de modo algum escritores, mas ratés.
Um deles principalmente me influenciou muito, um tipo que tinha feito estudos de teologia e que ia ser padre, mas precisava se casar para isso. No domingo do casamento, todo mundo esperava por ele, ele disse a si mesmo que era uma loucura e desapareceu. Esperaram por ele o dia inteiro na igreja e não foi mais encontrado durante meses.
Ele me influenciou muito. Não tinha dom nenhum, não conseguia escrever e lia muito pouco, mas seu conhecimento da natureza humana, sua psicologia inata eram simplesmente extraordinários. Nunca o vi enganar-se sobre coisa nenhuma. Era de uma lucidez absoluta, criminal e agressiva. Não digo que lhe devo diretamente muita coisa, mas ele era, em todo caso, um interlocutor muito importante para mim porque foi com ele que compreendi até onde é possível se ir. Na negação, ele foi realmente até o limite.
O que era muito curioso é que era um tipo enorme, que dava a impressão de ser muito próspero e sereno. Ele não era mau, não era um salafrário, mas era incapaz de alimentar a menor ilusão a respeito do que quer que fosse. Isso representa também uma forma de conhecimento porque, no fundo, o que é o conhecimento senão a demolição de alguma coisa?
Pergunta - O conhecimento malsão?
Cioran - Não só o conhecimento malsão, qualquer conhecimento levado às últimas consequências é perigoso e malsão pois —eu estou falando da própria vida e não dos conhecimentos ditos filosóficos— a vida só é suportável porque não se vai às últimas consequências. Uma empresa só é possível se se tiver um mínimo de ilusão, senão não é possível. A lucidez completa é o nada.
Vou lhe dar um exemplo para mostrar o lado demoníaco do meu amigo. Um dia, tinha me apaixonado por uma mulher. Ele viu que estava muito seduzido e me disse: É completamente insensato. Eu acabava de conhecê-la, era amor à primeira vista, ele sabia, mas continuou: Você viu a nuca? Eu respondi que não havia começado por aí. Olhe bem, ele me disse. Achei isso tudo uma besteira total, de uma inaudita mesquinharia, mas olhei assim mesmo, e descobri uma espinha na nuca. Ele tinha estragado tudo! Isso me impressionou demais, esse demônio dentro dele.
Pergunta - Esse tipo é um puro produto do mundo balcânico?
Cioran - Evidentemente, dada a sua falta de medida. Nós vamos longe demais. O Ocidente, a civilização francesa, toda a idéia de polidez —o que é? São limites que se aceitam pela reflexão. Não se pode ir mais adiante— não vale a pena —é de mau gosto.
Mas não se pode falar de civilização nos Balcãs, não há critérios. Somos impelidos ao excesso e o mundo russo, a literatura russa é mais ou menos isso. Por exemplo, eu sou muito sensível ao fenômeno do tédio. Toda a minha vida me entediei —e a literatura russa gira em torno do tédio, é o nada contínuo. Eu pessoalmente, vivi o fenômeno do tédio de maneira patológica talvez, mas fiz isso porque queria me entediar. O problema é que quando a gente se entedia com tudo, está tudo perdido, não é?
Pergunta - O tédio nesse sentido faz parte dessa categoria da temporalidade que é outra, diferente?
Cioran - Sim, exatamente, porque o tédio está finalmente baseado no tempo, no horror do tempo, no medo do tempo, na revelação do tempo, na consciência do tempo. Os que não têm consciência do tempo não se entediam; a vida só é suportável se não houver consciência de cada momento que passa, se não for assim está tudo perdido. A experiência do tédio é a consciência do tempo exasperado.
Pergunta - O sr. acaba de dizer algo que mostra até que ponto todo escrito esconde uma voz subterrânea...
Cioran - Todos os nossos atos têm subterrâneos, e é isso que é psicologicamente interessante, nós só conhecemos a superfície, o lado superficial. Acedemos ao que é formulado, mas o importante é o que não é formulado, o que está implícito, o segredo de uma atitude ou de uma proposição. É por isso que todos os nossos juízos sobre os outros, mas também sobre nós são parcialmente falsos. O lado mesquinho fica camuflado. Ora, o lado mesquinho é profundo, eu diria mesmo que é o que há de mais profundo nos seres, e é aquele a que menos temos acesso.
Os grandes escritores são precisamente aqueles que têm o sentimento desses baixos, Dostoiévski principalmente. Ele revela tudo o que é profundo e aparentemente mesquinho, mas é mais que mesquinho, é trágico; são esses os verdadeiros psicólogos. Eu conheço muita gente que escreveu romances e fracassou —mesmo Mircea Eliade escreveu muitos romances e fracassou, por quê? Porque eles só traduzem os fenômenos de superfície e não a origem dos sentimentos. A origem de um sentimento é muito difícil de captar, mas é isso que é importante e isso é válido para qualquer fenômeno: para a fé religiosa etc. Como começou? Por que continuou? É esse o desafio e só quem tem a divinação é capaz de enxergar de onde vem isso. E isso não vem da razão.
Pergunta - Também nas suas leituras o sr. está atrás dessa origem?
Cioran - Estou, e na minha vida também. O que é formulado é só uma parte do pensamento. É por isso que há poucos romancistas verdadeiros. Todo mundo pode escrever um romance mas não se trata apenas de escrevê-lo. Dostoiévski, para mim, é o único que foi até as origens dos atos; vê-se muito bem porque suas personagens fizeram isto ou aquilo, mas não se vê de imediato. Minha atitude não tem nada a ver com a psicanálise, nada, pois ela quer curar; não é isso que é interessante. É o demônio que habita os seres que importa —mas como captá-lo?
Pergunta - E como o sr. lê a poesia? Partindo desse tipo de premissas?
Cioran - Certamente. Por que um tipo é bom poeta e outro não? Quando o outro é mais sutil? Por que sua poesia não resiste? Porque o que faz a origem dos atos, o que é profundo, não passa; é brilhante, é notável, é poético, mas é só isso. Por que será que outro que tem menos talento é maior poeta? Por que será que um tipo é um gênio, quer dizer, mais que um talento? Porque conseguiu transpor alguma coisa que nos escapa, e que escapa a ele próprio.
Portanto é um fenômeno misterioso. Nos dias de hoje, há muita gente que escreve aforismos, isso se tornou uma espécie de moda na França. Se você lê, não é tão ruim assim, mas é algo que se esgota em fórmulas, que não tem prolongamento. Não há nada a fazer, é uma confissão sem segredos. É algo que não esconde nada, embora tudo seja bem formulado, tudo tenha um sentido, não tem futuro nenhum. O que constitui o segredo de um ser, é o que não se sabe. E é esse também o interesse da vida, do comércio entre os seres. Se não for assim, acaba-se num diálogo de fantoches.
Pergunta - Mas isso fica mais complicado no seu caso, dada a sua lucidez. Como escrever, como dizer alguma coisa para não dizê-lo?
Cioran - Sempre dizemos só uma parte do que queremos dizer. É o tom que é muito importante. Temos um tom, não somente como músicos, mas em geral, em tudo o que fazemos. Muito frequentemente, há uma falta de tom, ou não há tom nenhum. E isso, na verdade, é muito misterioso, pois não podemos defini-lo, só podemos senti-lo. Você abre um livro, por exemplo, e lê uma página que é notável, por que ela não lhe diz nada? Não que seja nula, mas não se sentem os prolongamentos.
Não sabemos de onde emana esse tom tão misterioso; temos aí uma espécie de irrealidade, em tudo o que é literatura. É o que se chama falta de necessidade —mas por que essa falta de necessidade? No comércio cotidiano com os seres, é a mesma coisa. Você encontra alguém que não vê há muito tempo, fala durante horas, mas é o nada. Você encontra outra pessoa e volta para casa transtornado. É essa a verdadeira originalidade dos seres —o que eles escondem e passa apesar de tudo o que dizem.
Pergunta - É como a música?
Cioran - É absolutamente como a música. E, para mim, as pessoas que dizem: Para mim a música não significa nada —considero que está liquidado, não preciso prosseguir, é algo de extremamente grave porque a música toca justamente naquilo que é o mais íntimo em cada um. Com quem não sente a música não tenho ponto nenhum em comum, é de uma gravidade inominável e uma espécie de maldição de que o tipo não tem consciência.
Pergunta - Falando em música, é preciso pensar imediatamente em Bach, que o sr. já evocou...
Cioran - Bach é um deus para mim. Acho inconcebível pensar que há pessoas que não compreendem Bach, e no entanto isso existe. Acho que a música é verdadeiramente a única arte capaz de criar uma cumplicidade profunda entre dois seres. Não é a poesia, é só a música.
Alguém que não é sensível à música sofre de uma enfermidade enorme. Acho inconcebível que alguém possa não ser sensível a Schumann ou a Bach, embora admita muito bem que alguém possa afirmar que não aprecia a poesia. Mas no caso da música é outra coisa, é algo de muito grave.
Pergunta - Quando o sr. ouve música?
Cioran - O tempo todo, principalmente agora que não escrevo mais. Eu parei de escrever, considero que não vale a pena continuar, mas essa secura é preenchida pela música. A vida sem a música é, na verdade, um absurdo para mim. Não precisamos escrever, uma vez que não é possível transcrever com palavras o que é de ordem musical. Nada do que faz sentido em música passa via escritura. Por que escrever nessas condições?
E, de todo modo, porque escrever de maneira geral? Por que multiplicar os livros, porque querer a qualquer preço ser escritor? Todo mundo escreve demais —é esse o drama faz muito tempo, essa superprodução inútil e absurda, principalmente em Paris. E por quê? Mesmo eu, pensei que não fosse escrever ou que fosse escrever muito pouco, mas acabamos entrando no jogo.
Agora, compreendi que não queria mais continuar com essa comédia. Antes, não era uma comédia, por que o fato de escrever correspondia, apesar de tudo, a uma espécie de necessidade, era uma maneira de me desembaraçar de mim mesmo. É preciso dizer que exprimir-se é a melhor maneira de simplificar tudo. Basta escrever alguma coisa e ela perde imediatamente o mistério, está perdido; você mata a coisa e você mesmo. Isso preencheu uma função para mim; agora não preenche mais.
Notei que as pessoas que não escrevem têm mais recursos do que as que se exprimem, porque elas guardam tudo nelas. Mas escrever é expulsar de si tudo o que havia de importante. Portanto, quem escreve é alguém que se esvazia. E, ao cabo de uma vida, é o nada. É por isso que os escritores são tão pouco interessantes. Eu penso isso seriamente, eles se esvaziaram de si mesmos, são fantoches. São seres muito brilhantes, que não têm mais ser.
Pergunta - O sr. tomou a decisão, ao chegar na França, de não trabalhar nesse país também?
Cioran - Tomei, foi de maneira ultralúcida que compreendi que é preciso aceitar qualquer humilhação ou sofrimento para não exercer um ofício, fazer coisas de que não se gosta e de que não se pode gostar, exercer um trabalho impessoal. Eu só teria aceito um trabalho físico. Só teria aceito varrer as ruas, qualquer coisa, mas escrever, ser jornalista, não! Eu tinha que fazer tudo para não ganhar a vida.
Para ser livre é preciso suportar qualquer humilhação e era quase o programa da minha vida, esse. Eu tinha organizado muito bem minha vida em Paris, mas as coisas não funcionaram como o previsto. Eu estive matriculado na Sorbonne até a idade de 40 anos, comia na universidade como estudante. Infelizmente, quando eu fiz 40 anos, me convocaram para me dizer: Sr., agora chega, há um limite de idade, ele é de 27 anos. De repente, todos os meus projetos de liberdade foram por água abaixo.
Eu me lembro que morava num hotel bem perto daqui, numa velha mansarda de que gostava muito, e que falei para mim mesmo: agora a situação ficou muito grave. Até ali, o problema tinha sido resolvido automaticamente: tudo de que precisava era de uma matrícula na Sorbonne para comer por quase nada nas residências universitárias. O que fazer? Não tinha meios para comer nos restaurantes nem para levar uma vida normal.
Isso não foi um marco na minha vida mas foi uma extraordinária preocupação. Agora, como eu estava disposto a aceitar tudo menos fazer o que não queria, isso complicava demais a minha vida. Felizmente ainda tinha o quarto no hotel, que pagava por mês e que não custava quase nada. Eu adorava, de verdade, essa velha e deliciosa mansarda, aqui pertinho, na rua Monsieur le Prince. E, de uma hora para a outra, vi que estavam pondo para fora todos os mensalistas, menos eu.
Eu conhecia o gerente e ele não ousou, mas eu pensei: uma hora dessas vai acontecer, é preciso de qualquer modo encontrar outra coisa. Foi em 1960, eu tinha publicado "História e Utopia" e conhecia uma senhora que trabalhava com apartamentos. Mandei-lhe meu livro, ela prometeu me ajudar e, três dias depois, consegui este apartamento por um preço decididamente insignificante, é um aluguel antigo. Eles não podem aumentar o aluguel e eu, que tenho horror da velhice, tiro um certo proveito disso, mesmo achando que não é muito justo com o proprietário.

Continua à pág. 6-6

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