São Paulo, sábado, 18 de fevereiro de 1995
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Los cuatro amigos

DEISY VENTURA

No dia 17 de dezembro, na cidade de Ouro Preto, MG, definiu-se a estrutura orgânica do Mercosul (Mercado Comum do Sul). Diante dela, percebe-se que o Mercosul está à mercê dos Executivos nacionais, alicerçado na amizade que logrem conservar. Não há segurança jurídica, apenas interesses comerciais comuns, muitos deles ainda incertos. A anunciada irreversibilidade não é mais do que uma tendência.
O Protocolo de Ouro Preto criou fóruns intergovernamentais, onde estão representados os interesses de cada Estado-parte, cujas decisões dependem da posterior ratificação pelas ordens nacionais.
Foi descartada a criação de órgãos supranacionais, isto é, de uma ordem jurídica independente. Neste caso, um poder comum, acima dos Estados, compreenderia a aplicação direta de parte das decisões, dispensando sua transposição para o direito nacional; segundo Jean Monnet, "uma delegação de soberania num domínio restrito, mas decisivo".
O exemplo clássico da adoção da supranacionalidade é a UE (União Européia), cuja segurança e estabilidade não mais dependem de seus membros. As instituições comunitárias autônomas, como o tribunal, podem sancionar os Estados faltosos, suas empresas ou cidadãos.
Quanto ao Mercosul, a escolha do modelo oposto pode ser atribuída ao desejo de relativizar o compromisso assumido, guardando uma imensa margem de discricionariedade: a obediência às decisões comunitárias é domínio de cada Estado-membro. Portanto, depende de cada governo e de cada circunstância, assim como de sua capacidade de negociação interna. O processo decisório compreende, assim, uma longa e incerta trajetória até que se chegue à eficácia das decisões.
Numa análise sucinta do Protocolo de Ouro Preto, podemos afirmar que ele manteve a estrutura orgânica do período de transição, criado pelo Tratado de Assunção, em 1991, através do Conselho (CMC) e do Grupo (GLMC). O primeiro, integrado pelos ministros das Relações Exteriores e da Economia e, periodicamente, pelos presidentes dos Estados-partes, é definido como "órgão superior", responsável pela condução política e pela tomada de decisões (art. 3). É, também, titular da personalidade jurídica do Mercosul (art. 8).
O Grupo, coordenado pelos ministérios das Relações Exteriores (art. 11), como "órgão executivo" (art. 10), deverá viabilizar as decisões tomadas pelo Conselho (art. 14), através de resoluções. Acrescentou-se ao GMC e ao CMC apenas a Comissão de Comércio (CCM), com idêntica coordenação, que deverá garantir a política comercial comunitária (art. 16), também recebendo reclamações (anexo 1º).
Formalmente, são três os órgãos desprovidos de capacidade decisória. A Comissão Parlamentar Conjunta (CPC) "procurará acelerar" a ratificação interna das decisões e "coadjuvará" na harmonização das legislações. Tais coadjuvantes serão indicados pelos Parlamentos nacionais conforme seus próprios critérios (art. 24).
O Foro Consultivo Econômico-Social (FCES), apresentado como garantia da democratização do processo, mereceu cerca de seis linhas do protocolo. Definido como o órgão de representação dos setores sociais e econômicos, paradoxalmente indicados pelos Executivos nacionais, ele poderá, no máximo, fazer recomendações ao Grupo.
A Secretaria Administrativa (SAM), com sede em Montevidéu, responderá pelas funções burocráticas. Enfim, os tribunais "ad hoc", sequer considerados como órgãos, nomeados a cada controvérsia e desprovidos de poder para impor suas decisões, terão sede em Assunção.
Com exceção da CPC, todos os demais órgãos têm seus membros indicados pelos Executivos. O protocolo não define o perfil dos "mercocratas"; nem quanto ao seu currículo, que deveria assegurar a independência em relação a interesses privados, nem sobre sua atuação, que deveria afirmar a supremacia dos interesses coletivos sobre os nacionais.
As primeiras conclusões são amargas. O texto do acordo contradiz o belo discurso dos atuais governos a respeito do Mercosul. A sociedade civil participará somente se for convidada, sem garantias de espaço ou continuidade.
Especialmente a composição do FCES não poderia dispensar a indicação pelas organizações sindicais e patronais. Os demais órgãos carecem da representação do Poder Judiciário, das corporações, da universidade, entre outros, que diligenciariam pela escolha democrática de seus representantes.
Na verdade, os órgãos não-decisórios são vazios de poder, não apenas porque nada decidem, mas porque sua legitimidade é uma benesse que um ou outro governo poderá conceder, em períodos não menos incertos.
De outra parte, todas as decisões serão obrigatoriamente tomadas por consenso, assim como todas as representações nos órgãos são paritárias. Isto quer dizer que o Brasil e o Paraguai, para efeitos de decisão, possuem rigorosamente o mesmo peso.
Além da complexa negociação visando à unanimidade, as decisões dos órgãos só "entrarão em vigor" após: 1) a incorporação das mesmas aos ordenamentos jurídicos nacionais; 2) a comunicação do fato à SAM; 3) a comunicação aos membros, pela SAM, de que todos já lhe informaram a incorporação; 4) o transcurso de 30 dias após a comunicação da SAM (art. 40). Inexistem prazos mínimos para nenhuma das etapas anteriores.
Registre-se, ainda, que não há uma carta de direitos fundamentais, sequer regras sobre relações trabalhistas ou seguridade social.
Caso circunstâncias comerciais vantajosas mantenham o ritmo das trocas, como ocorreu até o momento, o quadro institucional não suportará os conflitos que naturalmente serão gestados. À unanimidade corresponderá a paralisia, assim como a lenta ratificação será sinônimo de insegurança e de ineficiência.
Delegar algumas competências à comunidade de Estados não priva nenhum país de sua soberania, mas de fato o obriga a operar com rigor e seriedade as mudanças necessárias à integração.
Inalterada a estrutura institucional de Ouro Preto, resta esperar que a amizade entre os quatro parceiros do Mercosul seja infinita, enquanto dure.

DEISY DE FREITAS LIMA VENTURA, 27, é professora do Departamento de Direito Público e especialista em Integração Latino-Americana pela Universidade Federal de Santa Maria (RS).

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