São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 1995
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Palavras que escondem coisas

REINALDO AZEVEDO
EDITOR-ADJUNTO DE POLÍTICA

Passados quase dois meses do reinado FHC, a mídia se rende a uma nova mitologia, cuja história fabulosa se escreve com termos como "globalização", "catálise", "reengenharia", "flexibilização", "sinergia" e "parceria".
Como dizia Polônio, numa piscadela ao público, sobre a fala esgarçada do jovem Hamlet (de Shakespeare), "é um nhenhenhém, mas revela certo método".
Esse "método" é herança da "agenda" (outra!) collorida. O Brasil que bate recordes de mortalidade infantil busca ser redimido por práticas da gestão privada.
Não fosse um nhenhenhém, se estaria diante de uma curiosidade histórica: os paladinos da "modernidade" seriam os demiurgos de uma utopia regressiva: o mercado não daria apenas o formato do Estado, mas assumiria o seu lugar.
Por "globalização", defendiam os partidários do novo credo político-vocabular, entendia-se o fim das economias nacionais e, quem sabe?, dos Estados nacionais.
Oficialmente, o século 19 se renderia ao 20 quando este sai de cena. Ideologias e nacionalismos seriam sepultados pela liberdade alfandegária, o caminho mais curto entre o século 20 e o 18...
Uma pena. Da globalização, restam o chapéu mexicano e a sombra da socialização dos prejuízos em benefício dos megaespeculadores. O Brasil amarga déficit na balança comercial pelo terceiro mês consecutivo e não se sabe quanto das reservas cambiais, estimadas entre US$ 36 bilhões e US$ 38 bilhões, é constituído de capital especulativo, o mesmo que devolveu o México à geografia econômica de onde jamais saiu.
O erro de cálculo ou má-fé das górgonas do liberalismo custa bem mais do que reputações acadêmicas. Busque o leitor no dicionário o significado de palavras tão pernósticas e fique atento à sua contínua atualização na imprensa.
Ao escolher sua agenda vocabular, ao desqualificar seus críticos, resumindo sua fala a nennhenhéns, ao demonstrar contrariedade com a pergunta de um repórter sobre o mínimo, FHC não está apenas expressando sua paixão pelo possível (idéia requintada e inútil). Está expondo suas prioridades.
Tivesse esse governo uma agenda para o social como a tem para as reformas, certamente FHC estaria gastando o seu latim (ou o seu tupi, no caso do nhenhenhém) para desqualificar os PFLs de hoje e não os aliados de ontem.
Ocorre que, à moda do conselheiro Aires, de Machado de Assis, o presidente não se importa que o PFL lhe faça a agenda, lhe roube alguns tostões do bolso do colete e ainda pense dele coisas pouco airosas, como fazia o criado de conselheiro.
Foi assim que o partido conquistou a coordenação política das reformas (invertendo a sua pauta, inclusive), a presidência da Câmara e as comissões mais importantes. Estóico como o conselheiro machadiano, FHC se mostra agradecido e convencido de que o criado poderia, afinal, exigir muito mais e pensar coisas muito piores.
Alguns preferem ser devorados pela nova mitologia a decifrá-la. Em nome da paixão pelo possível, idéia requintada, mas inútil.

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