São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 1995
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O homem que se inventou

HAROLD BRODKEY

Brando tomou a pose de uma mulher bela criou uma anti-versão da diva

Este ar de soldado durou enquanto Brando pôde projetar sexualidade; depois ele transformou-se num durão pós-Bogart a quem a vida jamais deu uma oportunidade, mas que triunfa assim mesmo —misto de Super-Homem "père", Poderoso Chefão e Kurtz.
Para as pessoas que viram algum trabalho de Brando quando jovem, o primeiro impacto que sua figura causava era o de presença sexual. Os anos 50 são normalmente encarados como uma época pouco sexualizada.
No entanto, foi nessa década que floresceram Brando, Mitchum, Russel e Bardot —estranhos precursores da revolução sexual dos anos 60. Teria sido a guerra que pôs estas pessoas em ponto de fervura e depois as lançou? Em "O Pecado de Todos Nós" (1967), Elizabeth Taylor tentou expressar sexualidade, mas ela não passa de uma prostituta envelhecida e pretensiosa em comparação com Brando, que faz o papel de um major homossexual reprimido e com impulsos assassinos —meu Deus, os enredos dos filmes daquele tempo!
Não estou analisando a androginia de Brando. Parto do pressuposto de que todo mundo é andrógino. Porém Brando tomou a vaidade, a pose e a obstinação de uma mulher bela e desenvolveu uma versão desconstruída —uma antiversão da sexualidade romântica de uma diva. Ele lhe deu um toque masculino, utilizando a energia rigorosamente máscula de seu diretor, Elia Kazan.
Kazan, que dirigia homens muito melhor do que mulheres, era um ressentido, potente e mulherengo —e tudo isto encontrou expressão de modo maravilhoso em Brando. Brando transformou-se num substituto de Kazan. Temos aí o ícone sexual que dominou o palco e a tela pro 20 anos. Em "Sindicato de Ladrões", Brando acrescentou mais um elemento, de uma beleza estranha: um toque de herói-vítima.
A promiscuidade aponta para a perda do eu, para o vício, para uma narrativa do tipo de "As mil e uma noites", ela insinua uma história que se renova constantemente. A imagem da promiscuidade como algo de nobre e malsinado ainda é poderosa entre os militantes homossexuais, alguns sadomasoquistas e críticos literários.
Marlon Brando apresentava esta imagem abertamente. Dizer metaforicamente que a rebeldia de Brando gerou outras —Elvis Presley e os Rolling Stones, o movimento "gay and black is beautiful"— é apontar para o poder de seus primeiros trabalhos, ou, ao menos, atentar par o modo como elementos acidentais do espírito de nossa época favoreceram Brando. (Quanto a mim, prefiro considerá-lo um grande inventor.)
Quando filmou "Uma Rua", Brando já estava com as nádegas gordas. Numa entrevista concedida a Truman Capote, publicada em "The New Yorker" em 1957, ele comentou, a respeito de seu sucesso repentino, que foi como se um dia ele "acordasse (...) sentado em cima de um monte de doces". Sobre a imagem de Brando paira uma sexualidade punitiva à medida que envelhece, em "A Face Oculta", e na sequência de "O último Tango" que envolve sexo anal.
Apesar do enredo, "O Último Tango" é uma espécie de "Der Rosenkavalier" do astro mais sensual de seu tempo. Em sua crítica, Pauline Kael parece ter anunciado uma verdade de modo oblíquo: que Brando se desintegrando na velhice, como Brando obeso e moribundo, continuaria a ser uma das maravilhas de nossa época.
Kael certa vez traçou uma distinção entre atores altos, como Jimmy Stewart e Gary Cooper, e atores visivelmente baixos, como Brando e James Cagney. Ela afirma que os altos se escondem na bondade a fim de reduzir-se, enquanto os baixos são maus. É possível que, para homens de baixa estatura, seja mais comum a sexualidade ser representada pela promiscuidade competitiva. Os homens baixos são mais abertamente violentos porque se sentem defraudados. Kael não diz que os atores altos se esforçam no sentido de ser menos ameaçadores enquanto os baixos enfatizavam seu potencial ameaçador, mas creio que esta é uma maneira de compreender Brando: ele era menos ameaçador devido a sua estatura, e isto o estimulava a ser mais ameaçador.
Brando não costuma ser acusado de inautenticidade sexual. As pessoas que dizem conhecê-lo não o desmerecem sexualmente.
Em sua maioria, as citações que aparecem no livro de Manso a respeito do desempenho sexual de Brando dizem respeito à sua sensibilidade e seu toque físico. Na versão cinematográfica de "Uma Rua", há um "close" surpreendente de Brando no papel de Stanley, quando ele está lutando com Vivien Leigh numa tentativa de estupro, e seu rosto é a máscara de um sátiro. Trata-se de um desempenho brilhante —porém talvez não seja apropriado um estupro. Sua expressão insinua malícia e perigo, mas não violência e controle. Minha impressão é a de que ele parecia dizer, com sua expressão facial: "Eu a conheço", ou "Peguei você". Em seus filmes subsequentes, Brando não afirma esta autoridade sexual.
Tanto na autobiografia quanto no livro de Manos, dá-se a entender que Brando gosta de controlar, de sentir-se enlaçando ou envolvendo uma outra consciência. Tudo leva a crer que Brando emergiu de uma infância em que se sentia impotente, dotado de uma beleza delicada demais e sem instrução —e refugiou-se numa sensação de poder que é apenas contingente, e em última análise não o satisfaz.
Brando tinha uma beleza pouco viril. Porém quebrou o nariz quando lutava boxe com um empregado do teatro, no tempo em que trabalhava em "Um Bonde", e ganhou uma beleza máscula. Versões ligeiramente diferentes desta história aparecem no livro de Brando e no de Manso. Irene Selznick, que produziu a montagem da peça, disse-me que era difícil iluminar Brando —sua beleza era delicada demais para o papel de Stanley.
Irene Selznick disse também que ele se tornou um ator rebelde após as primeiras semanas da temporada, e que isto a assustava. O envolvimento total de Brando com seu personagem no palco tinha algo de zen, juntamente com um narcisismo evidente e laivos de loucura e crueldade. Tudo que ele fez tem um toque de deboche. Segundo Selznick, Brando odiava Jessica Tandy, mas a própria platéia também a odiava às vezes.
Para Selznick, esta montagem foi um evento mágico. Ela preocupava-se com a possibilidade de ser processada, porque o contrato de Williams não permitia que ninguém fizesse qualquer alteração no texto. Selznick obrigou-o a assistir à peça para que ele visse o que Brando estava fazendo naquele papel. Williams não se incomodou nem um pouco. "Deixe-o em paz", o autor teria dito a Selznick. "A platéia gosta dele. O espetáculo está dando dinheiro. A peça será preservada em livro."
Selznick nega que tenha sido ela quem descobriu Brando, e atribui o feito a Kazan e Williams. O texto de "Um Bonde", antes de seu significado ser alterado por Kazan e Brando, representava uma espécie de realidade e aspiração sociais que ela compreendia bem. Selznick não gostava de Brando, aquele homem bruto, andrógino e sensível, proletário ou desprovido de classe social —um ator sem tradição, sem "glamour" à antiga, sem toques cavalheirescos.
Depois de lançar Brando, Kazan trabalhou com outros astros sensuais, inclusive Tim Everett, James Dean e Warren Beatty. Mas o curioso é que todos eles vieram a ser vistos como derivados de Brando, e não como produtos da direção de Kazan.
Tendo ou não uma inocência original (ao que tudo indica, não), Brando era um exibicionista deslavado, não um democrata e sim um astro. E tendo-se tornado um ícone colossal do cinema, passou a receber enorme quantidade de atenção.
Brando é diferente de todos os outros astros. Clint Eastwood e Greta Garbo assemelham-se enquanto presenças cinematográficas —ambos passam um ar pós-coito, ambos são rabugentos e melancólicos; e Marilyn Monroe lembra Mae West, misturada com W.C. Fields e Shirley Temple. Ninguém se parece com Brando. Eastwood é comprometido com a ação, enquanto Brando é condenado a agir.
Em seus primeiros filmes, Brando é um rosto inesquecível associado a um corpo um pouco inchado e um tanto indisciplinado. Sem dúvida, há algo dele em Jack Nicholson, que exibe uma atitude porra-louca, irônica, com relação ao lado demoníaco da sexualidade e da presunção; num estilo diferente, é o que também faz Sharon Stone. E depois que começo a pensar nisso, vejo ecos de Brando em Robert Lowell, em John Irving, em Nureyev, em Maria Callas.
Ninguém avançou em sua carreira por contracenar com Marlon Brando. Em "Duelo de Gigantes", um filme de Arthur Penn dos anos 70, Brando —de vestido, bancando o travesti— era o assassino mais sádico e mais temido do Oeste. Trata-se de um "western" muito estranho, que não vem com uma explicação embutida.
Penn usa Nicholson para representar a bondade relativa, e o filme não consegue recuperar-se deste equívoco: o tema deveria ser as nuanças e variedades do mal. Mas o filme acaba sendo realista quando Brando entra em cena e sentimental em sua essência.
Apesar de todo o poder ilusionista do cinema a seu favor, Brando jamais parece "amar" —nem em "Saionara", nem em "O Pecado de Todos Nós" nem em "Sindicato de Ladrões". Esta ausência de amor fazia parte de sua imagem insinuante. Embora ele insinue a solidão ao mesmo tempo que a nega, Brando é de uma obscenidade magnífica como homem sozinho, uma espécie de vontade corporificada extraída de seus próprios devaneios, projetada na tela e apropriada por todo o mundo.
O livro de Manso aborda em detalhe vários aspectos deste fenômeno. Brando menciona-o em seu livro, mas não apresenta exemplos. Tendo lido as duas obras, ficamos com a impressão de um homem que ganhou entre US$ 50 e 100 milhões e perdeu, ou deixou que lhe roubassem, boa parte desta quantia. Um homem que dormiu com umas duas mil mulheres e um número desconhecido de homens. Um homem considerado o melhor ator de sua época.
Em seu livro ele parece estar dizendo que seu triunfo se deu entre criaturas artificiais —que as outras pessoas eram irreais para ele. No decorrer de sua vida, Brando parece ter encontrado mais realidade em meio a membros de uma outra cultura, pessoas que tiveram menos êxito ou do sexo oposto —entre mulheres-objetos, criaturas sensíveis e apaixonadas por ele.
A incapacidade ou falta de vontade —talvez inocente— de projetar qualquer sentimento ou desejo com relação ao outro torna-se, no trabalho de Bando, uma espécie de sadismo misturado com masoquismo. Ele explora este aspecto em "A Face Oculta" —um filme ruim cheio de observações argutas. A paixão do mundo por Marlon Brando era claramente de natureza sadomasoquista— tal como a paixão por Brigitte Bardot.
A meu ver, o sentido de sua popularidade é sempre este, em qualquer abordagem de sua arte ou seus objetivos. Depois que Brando atingiu o sucesso, não ficou claro se seu isolamento representava uma consciência sofisticada do mundo, uma forma de heroísmo, uma fantasia cinematográfica de independência masculina ou um pedido de socorro.
Ainda que Brando fosse emocionalmente recalcitrante, como ator ele não era material recalcitrante. Tecnicamente, era excepcional, e também era excepcional como representante do diretor. Também não havia dúvida de que ele era amoral como qualquer membro da massa, um homem massificado. Esta contradição jamais foi resolvida em seus filmes, nem por aqueles que escreveram sobre ele. Bertolucci a percebeu, mas não sei se chegou de fato a dirigir Brando. Bertolucci cometeu o erro de fazer Brando interpretar um americano expatriado em Paris, em "O Último Tango".
Neste filme, Brando apresentava o fracasso sexual como a falta de significado da vida, como o fracasso sexual do capitalismo. Ele devorava o tema e o cuspia de volta —uma Dorothy socialista e vaidosa no Oz sexual do pós-guerra.
Mas a atitude de desafio orgulhoso que ele assume não é a de um expatriado fracassado. Em seu desempenho, ele retrata de modo beligerante as traições das mulheres, a bestialidade das mulheres. Brando exibe sentimento de culpa, insatisfação, uma espécie de sadismo infantil e apresenta monólogos grandiosos e agressivos, mas o que eu vejo é uma personalidade extraordinariamente poderosa agindo de modo punitivo e suicida por causa do tempo, porque o relógio biológico dentro dele está se esgotando. As cenas do filme são tão artificiais quanto os números musicais da Sinfonia de Paris. Mas o que fica na memória como imagem dominante é a figura de Brando, envelhecido e raivoso.
Em seu livro, Brando afirma que gosta de conversar, porém não dá exemplos. Manso também não o faz; sua principal fonte é a entrevista de Brando concedida a Truman Capote. A maioria dos sentidos que Manso atribui aos atos de Brando e das interpretações que ele propõe para o caráter de seu biografado constam da entrevista com Capote: o egotismo, a realeza criada para consumo próprio, o toque de ignorância. Porém esta entrevista tem algo de datado.
As características atribuídas a Brando também podem ser apontadas em Greta Garbo. Até mesmo Myrna Loy foi alvo de acusações idênticas. Pode-se dizer que as atuações mais recentes de Brando consistem basicamente em cansaço existencial, uma ironia ou desilusão fria que era claramente assexual ou mesmo anti-sexual —um desprezo pelo sexo que pode ser percebido em algumas das estrelas mencionadas acima.
No caso de Brando, é também possível que este significado tenha raízes nuns resquícios de catolicismo, e que seja mesmo infernal. O mal impera no planeta. Mas há algo de ambíguo no negrume de Brando, pois uma suspeita de otimismo e utopia paira sobre ele e seu trabalho.
Como a maioria das personalidades dos anos 50, Brando dedicou um tempo extraordinário à análise, porém optou por ser o pai de um dogma fundamentalmente não-verbal. Nos filmes, tal como no palco, Brando insere pequenas marcações, cadências que exprimem, sem palavras ou em falas desajeitadas, suas próprias teorias e idéias sobre a vida. Brando, um deus? Os homens que dominam a tela tornam-se figuras de fantasias sexuais. Pode-se dizer que o lugar onde a existência de Brando é bem-sucedida é a esfera das alucinações vívidas que acompanham os atos sexuais, as narrativas que elaboramos para auxiliar a cópula ou a masturbação.
O poder num homem envelhecido é uma imagem válida —tanto quanto a perda do poder. Brando com papadas e olhos duros, amalucados, torna-se uma imagem de dinheiro, de poder e de autocomplacência dolorida e decadente.
Não conheço Brando em pessoa. Mas uma vez, em Nova York, numa apresentação de "The entertainer", meu agente literário e Irene Selznick arranjaram convites para Brando e para mim que nos colocaram um ao lado do outro. Laurence Olivier estava magnífico no papel de um artista mambembe de music-hall.
Brando, muito bem vestido, estava enfiado em sua poltrona de modo a parecer espantosamente pequeno —não que ele fosse tão pequeno assim, mas tinha um poder colossal de projeção, que funcionava até de perto. Exalava uma autoridade que lembrava Barishnikov, porém uma masculinidade muito diferente —menos nobre e mais traquinas.
Não ria, nem respirava, nem aplaudia de modo a atrair a atenção. Observava e examinava, e de vez em quando nos entreolhávamos. Minha esposa de então, Joanna Brown, não gostava do trabalho de Brando e quase não lhe deu atenção. Em seu livro, Brando diz que Olivier não carregou no sotaque —em outras palavras, não enfatizou a marca de classe social. Mas isto é algo que ninguém havia feito antes de Brando. E com Olivier isto era irrelevante; para ele o importante era a quarta parede, a consciência de ser ator. Por mais fantástico que fosse o trabalho de Olivier, tratava-se de uma magnífica leitura. Porém repito que foi maravilhoso.
"Não é canastrice", disse eu a Brando, meio estupefato, no intervalo. Havia tanta gente comprimida nas passagens entre as poltronas que desisti de sair para fumar um cigarro. "Não. É um desempenho muito bom", disse Brando, no tom mais educado, modesto e burguês que se pode imaginar.
"Na verdade, ele está detestando", murmurei para minha mulher, sentada do outro lado. E ela respondeu: "Eu também estou."
Pouco a pouco a multidão avançava. Algumas almas intrépidas ou apaixonadas foram as primeiras a romper a barreira. Logo em seguida, vimo-nos totalmente cercados. Mas era uma platéia educada, de teatro. Brando dava autógrafos e respondia a elogios sem ironia. Disse-me: "Desculpe a situação."
Quando tocou a campainha assinalando o fim do intervalo, Brando disse à multidão: "Não vamos atrasar a peça." Então quase todos voltaram a seus lugares. Umas poucas pessoas continuaram a olhar para ele, suspirando.
No final, ele disse: "Eu não faria desse jeito." O que era óbvio. Olivier não apenas trabalhava diretamente para a platéia como também usava a cultura teatral britânica como contexto, e mantinha a caracterização a uma distância variável, que ora aumentava, ora diminuía. Jamais deixava de ser Laurence Olivier. Nunca me senti mais entretido no teatro; disse isso a Brando. E disse que estava desbundado. "Mas a peça é uma bobagem", acrescentei.
Ele respondeu: "É". Até onde pude entender, creio que ele queria dizer que aquela peça era desprovida de verdade, no meu sentido e no dele. (Digo no "meu" porque estava influenciado por ele.) A intenção do autor fora utilizar uma linguagem cuidadosa que se elevasse ao patamar da verdade simbólica e da poesia. Mas a poesia grosseira do estrelismo de Olivier sobrepujava esta intenção. Seu desempenho era descaradamente sedutor. "Vou dizer-lhe que ele estava maravilhoso, e com toda sinceridade", disse Brando, com um suspiro profundo, enquanto os admiradores e os caçadores de autógrafos voltavam a ajuntar-se.
Em um de seus últimos papéis de homem sexualmente ativo no cinema, Olivier contracenou em "O Príncipe e a Corista" (1958) com Marilyn Monroe, a mulher que foi o paradigma da sexualidade masculina nos anos 50. Foi um par curioso. O que Olivier sabia a respeito da atração sexual não combinava com o que Marilyn sabia sobre o mesmo assunto.
Ela nada sabia sobre consequências —ou melhor, não se importava com elas. Parecia mais ousada que Brando. Era a mulher sem medo, pré-freudiana. Tanto ela quanto Olivier usaram um subtexto de humilhação em seus personagens. Marilyn valeu-se da atitude de bom humor diante da degradação que projetava nas comédias. Nunca mostrou ódio à humilhação.
Brando normalmente manifestava esse ódio. Queixava-se da humilhação que a condição de ator implicava. Sua raiva, ao contrário da de Olivier e de Marilyn Monroe, era visível à flor da pele. Olivier, ambíguo, dotado de amplos recursos técnicos e muita inteligência, criava filigranas de humilhação masculina. Marilyn era monstruosa, com seus lábios úmidos de satisfação, sua burrice aparente, o prazer que lhe proporcionava sua forma de brincar. Tal como Brando fazia com suas co-estrelas e diretores, ela humilhou Olivier, eliminou-o da tela. O que mais dá prazer no filme é vê-la triunfar sobre o talento e a inteligência de Olivier, sua grandeza, sua cultura perceptível.
Brando na tela era um construtor semelhante. Este seu lado implacável talvez tenha origem na humilhação inata. Usar Marilyn Monroe para ver Marlon Brando nada tem de excêntrico. Em "Quanto mais Quente Melhor", Marilyn fazia o papel de uma jovem bem-humorada e manipulativa, uma prisioneira de sua "persona" sexual que ao mesmo tempo estava livre da pressão sexual, uma mulher que gratificava a si própria, que não precisava de ninguém e aceitava todos.
Esta descrição também se aplica a Brando. Marilyn era mais alegre na superfície que ele, porém dentro de ambos havia a mesma força devoradora. Imagino que as pessoas que iam para a cama com eles não precisavam ser sensuais; a sexualidade de Brando e Marilyn compensava a dos parceiros.
Qualquer homem sexualizava-se ao mergulhar nos braços glutões de Marilyn, braços que não julgavam ninguém, braços de sacerdotisa do sexo. Os méritos e deficiências sexuais do homem em questão pouca importância tinham. O que importava era a magia de Marilyn. É o que se dava com Brando.
Peça a alguém que fale sobre Brando como ator, e a resposta mais comum que você vai ouvir é: "Brando é Brando". Hoje em dia, ao que parece, ele é mais admirado como artista por homens do que por mulheres. Porém sempre foi uma força em prol da igualdade, de todo tipo de miscigenação. Quando perdeu sua vaidade sexual e sua força de sugestão sexual, tudo mudou para Brando; porém seguiu em frente, numa espécie de ímpeto autobiográfico tresloucado.
Já velho, Brando parece um tanto automático: não manipulativo, porém ainda automaticamente irresistível. Creio que ele está se esforçando excessivamente, sentindo a morte já tão perto. Todos que o cercam —pais, esposas, amantes— roubaram-lhe dinheiro e orgulho, ou tentaram fazê-lo. Sua autobiografia é inteligente e, como já disse, quanto mais ele mente, mais emerge um senso de verdade.
Durante toda a vida Marlon Brando representou conceitos estranhos de raiva, piedade e autocomiseração, de absolvição para o macho enquanto soldado, de absolvição para si próprio —antes como ator, agora como autor; continuará a fazê-lo até a morte.

Tradução de PAULO HENRIQUES BRITTO

Copyright 1994 de Harold Brodkey, republicado com a permissão de Wylie, Aitken & Stone, Inc.

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