São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 1995 |
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TRECHO Hector foi sepultado perto do mar que ele antes amara. Não muito longe dos baixios onde se bateu com Achille por uma lata e por Helen. Ele não ouviu o lamento da amendoeira-do-mar sobre a baía quando Philoctete soprou o búzio, nem a batida solitária de um rufar de onda, nem uma vela a taramelar pronta para o descanso após um dia de trabalho, e o ajudante, calculando profundidade, curvado sobre a amurada, sondando depois, desanimado, as braças com um remo, o mesmo rito que seus companheiros logo iriam repetir quando chegasse a vez deles de jazerem quietos como Hector, baixando uma canoa de pinho-resinoso no entresseio da terra, para dormir sob as conchas empilhadas, em qualquer tempo que fizer sobre o montículo coroado de violetas. Agachando-se para seu amigo ouvir, Achille murmurou algo sobre o rio ancestral de todos eles, e as coisas que iria reconhecer quando chegasse lá, seu verdadeiro lar, para sempre e sempre e sempre, e todo sempre, compère. Então Philoctete veio coxeando e firmemente descansou a mão num ombro que tremia, para ancorar sua tristeza. Sete Mares e Helen não se aproximaram. Achille levara um remo até a igreja e o pusera de pé do lado de fora com a lata vermelha. Agora sua voz ganhou força. Disse ele: "Companheiro, esta é sua lança", e devagar deitou o remo, do modo como havia colocado os remos paralelos no casco da gomeira no dia em que o andorinhão africano e sua sombra disputaram corrida. E era esta a oração que Achille não podia proferir: "A lança que lhe dou, amigo, é apenas madeira. O vexame passou. Eu sei como você a tratou bem. Você nunca soube de minha admiração quando se postava cruzando o sol na proa da canoa comprida com as placas do peito como um escudo; eu diria que qualquer inimigo assim é uma honra. Porque nenhum africano jamais lançou com tanta beleza sua ampla rede de arrastão na baía junto à qual nasceu. Você está me ouvindo? Os outros não sabiam que você gostava de mim. Tudo bem. Tenha um bom sono. Boa noite." Achille removeu a mão de Philoctete, e então viu Helen de pé sozinha e com um véu na luz enviuvante. Ele então estendeu um braço até a sepultura e ergueu a lata para ela. Helen acenou com a cabeça. Um vento apagou o sol. (Extraído do Livro Sexto, capítulo 46, 1, de "Omeros") DEREK WALCOTT Tradução de PAULO VIZIOLI Texto Anterior: Uma epopéia grega no Caribe Próximo Texto: 'D. Juan' desnuda jogo da arte Índice |
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