São Paulo, quinta-feira, 23 de fevereiro de 1995
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FHC e o veredicto da história

JOSÉ AUGUSTO GUILHON ALBUQUERQUE
Governo dos homens e administração das coisas, esta a distinção clássica que dava suporte ao sonho marxista de uma sociedade sem Estado, hoje herdado pela utopia neoliberal de um mundo totalmente despolitizado: o fim da história. Essa utopia também se manifesta na dissociação entre administração e política, e na subordinação desta à primeira.
Mais do que uma queda na popularidade —previsível apesar de dramática, mais do que as brutais repercussões da crise mexicana— que, ocorrendo agora, logo poderão ser levadas em conta nas reformas destinadas a consolidar e eventualmente corrigir os rumos do real; mais do que as conhecidas insuficiências do sistema partidário para dar sustentação ao governo, o grande risco que corre, hoje, o governo de Fernando Henrique é o da dissociação entre a política e a administração.
Um governo precisa de ambas, porém, por melhor que seus administradores saibam mobilizar os recursos do Estado na direção traçada, nada conseguirão se as forças políticas estiverem olhando em outra direção. É por isso que os políticos estão permanentemente tratando de mobilizar corações e mentes, apontando-lhes a direção ou tornando-a mais clara para todos.
O que fez Fernando Henrique passar, de modo fulgurante, da condição de intelectual brilhante, com inclinações políticas, para a condição de estadista foi precisamente sua preocupação primordial, em toda a fase de preparação do real e na campanha eleitoral, com a mobilização de apoios à estabilização, deixando a administração das coisas a quem tinha mais competência do que ele para a elaboração técnica do plano. Seria impossível entender por que não foi um técnico, mas Fernando Henrique, quem conduziu a elaboração e a implantação do real, sem reconhecer sua capacidade para mobilizar e dar direção aos técnicos que com ele colaboraram e aos políticos que o apoiaram.
Essa capacidade, que o pensamento político chama virt— é, na sua essência, o que hoje chamamos comunicação. Foi sua capacidade de comunicar, ao presidente Itamar, à sua equipe, a uma parte da classe política, à população, sua condição de homem de grande poder e saber, disposto a enfrentar o caos, para trazer a estabilidade, a ordem e a justiça, a chave do sucesso do real, e a via para chegar ao poder.
A direção política assumida com clareza e determinação transformou uma situação de fracasso previsível —ser o enésimo ministro da Fazenda do presidente Itamar, numa situação de inflação descontrolada— em trunfo para obter a consagração das urnas. O risco da despolitização é de que uma situação claramente vitoriosa —com a retomada vigorosa do superávit comercial, com a inflação mais baixa dos últimos 46 anos, com o recorde de investimentos produtivos estrangeiros na década— seja percebida como fracasso iminente do Plano Real (o efeito tequila), insensibilidade diante dos graves problemas sociais (veto ao aumento real de 50% sobre o salário mínimo), academicismo (seminários em vez de articulação com os políticos), indecisão (anistia a Humberto Lucena), fraqueza diante das pressões (lentidão na definição do segundo escalão).
Isto não ocorre apenas por má vontade da mídia e da oposição, mas essencialmente porque o governo não está dando a direção política que dele se espera, ou melhor, não está conseguindo transmitir a idéia de que tem uma direção política, e para onde ela aponta.
A composição do ministério Fernando Henrique acabou espelhando uma idéia divulgada durante a transição, a qual, tanto quanto sei, o presidente não compartilha, de uma divisão entre um núcleo íntimo de técnicos, reunindo todos os poderes, e uma franja de políticos. Embora a composição do ministério e as pequenas alterações de atribuições tenham ficado longe de corroborar essas especulações, a imagem permaneceu. E permaneceu, apesar de falsa, não necessariamente por má vontade, mas porque não se formou outra imagem, correspondente à direção política que o governo desejava imprimir.
E não se formou sobretudo porque a composição do governo acabou dissociando a administração da política. Embora na prática haja equilíbrio entre técnicos e políticos no ministério, são os administradores que —com a exceção conspícua de José Serra— formam o núcleo visível do poder.
São da melhor qualidade, muitos com uma vasta experiência de serviço público. Pelos que conheço pessoalmente, nutro o maior respeito e, em alguns casos, amizade pessoal. Possuem qualidades que os políticos muitas vezes não têm, e que são essenciais à administração pública, tais como conhecimentos técnicos, experiência de gestão, gana para atingir objetivos e promover realizações.
Mas é preciso reconhecer que existem outras qualidades, ligadas ao governo dos homens, mais do que à administração das coisas, igualmente essenciais ao exercício do poder público, que são a sensibilidade para a vontade popular —especialmente aguçada nos que detêm ou perseguem mandatos eletivos— e a obstinação em mobilizar apoios —condição sine qua non dos que possuem projetos políticos próprios de longo prazo.
Assim, pode-se dizer que o bom político é aquele que sabe mobilizar talentos políticos e competências administrativas para dirigir a sociedade, não sendo demérito lhe faltarem conhecimentos técnicos ou experiência direta de gestão. Analogamente, não é demérito para o bom administrador faltar-lhe a vocação política, desde que coloque suas competências a serviço de uma liderança dotada de virt—.
É bom deixar claro que estamos falando todo o tempo de percepção. Foi por percebê-lo como um grande realizador, comprovado na implementação do real, que o povo elegeu Fernando Henrique. Certamente a manipulação é ineficaz a longo prazo, e comunicar, sem fazer, tem as pernas curtas. Mas um governo de grandes realizações, que não consiga mostrar à sociedade de que modo o presente aponta para o futuro, só tem lugar garantido na história.
Mas o Congresso, os partidos, os Estados, as lideranças corporativas e a opinião pública não têm a paciência necessária para esperar esse veredicto tardio. E o governo precisa deles para governar. Para tanto, toda atenção é pouca para evitar a despolitização.

JOSÉ AUGUSTO GUILHON ALBUQUERQUE, 53, é professor titular do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo. Foi professor visitante na Universidade de Georgetown (EUA) e na cátedra Jacques Leclercq da Universidade Católica de Louvain (Bélgica).

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