São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Participação nos prejuízos

RICARDO SEMLER

Liguei para o meu advogado para saber como é que se opera o impeachment de um prefeito. Más notícias —está tudo montado para que isto não seja possível. E o que deveria funcionar, o equilíbrio entre os poderes, é risível. A Câmara é composta por uma maioria de carneirinhos e os tribunais de contas não são famosos por sua rigidez. Conclusão: pouco impede que o prefeito quebre uma cidade ou monte um império romano.
Em Sampa, os fatos são de estranhar. O filhinho do Maluf teve seu processo arquivado. O pianista de partituras fiscais desapareceu da mídia. Por razões desconhecidas, a subsidiária da OAS que limpa a cidade recebe mais do que na gestão anterior. Há, também, uma grande movimentação imobiliária precedendo a nova Faria Lima.
Empreiteiras estão rindo de orelha a orelha em função das renegociações que foram feitas. Empresários do ramo de transporte coletivo estão satisfeitíssimos —voltaram a receber por passageiro, e não por quilômetro, e tiraram ônibus de circulação em que a tarifa teve aumentos recordes. A poluição por caminhões é impune. As empresas de medicina em grupo lambem os beiços com as promessas de mudanças na área de saúde.
O orçamento anual foi aprovada com um dos maiores déficits da história. A cidade segue velozmente o caminho do Estado. O IPTU aumentou brutalmente desde 1992, pela alteração do valor venal, além da alíquota. O Reynaldão, fiel ao pensamento do chefe, confessou que aqui só se faz obra para quem paga imposto. Bem, foi o Reynaldo que disse que o Maluf gastaria US$ 50 bilhões em obras na cidade. Todos riram da sandice. Talvez ainda engulam sua incredulidade.
O prefeito inaugurou a participação nos prejuízos. Os salários dos servidores estavam ligados ao orçamento, como medida de contenção de folha. Agora que o IPTU disparou e a renda subiu, o prefeito anula o aumento da categoria. Conhecido como frequente manipulador da verdade, manda dizer na TV que os servidores pediam 81% de aumento todo mês. Todo mês! No estilão Jânio, faz de conta que as seringas de vidro não são problema seu, e despede algum coitado. Dá uma de Galtieri nas Malvinas, usando o debate grotesco sobre o fumo nos restaurantes para desviar a atenção de uma cidade inundada, suja e malcuidada (confissão do próprio alcaide).
Os próximos passos são o jacaré de pneu e as pistas exclusivas de transporte solidário. Tal qual Jânio, vê como novidade esquemas dos anos 70 dos EUA, todos a serem aplicados autoritariamente, e não com discernimento, para fazer farol. Alimenta a rentável indústria de multas, que é de uma malícia desumana. A falta de cinto custa dois meses de salário, e um cigarro acendido no bar pode custar ao servente quatro meses de trabalho numa obra! O mesmo servente, pendurado do lado de fora do ônibus, nunca viu uma multa ser aplicada aos empresários de ônibus por excederem a lotação.
O número raquítico de 39% de aprovação do prefeito indica que nem todos estão dormindo. Os que integram os 39% dividem-se entre os mal-informados e os cínicos. O que nos sobra se o impeachment não se aplica? Como aprendemos em nossa sombria história, só nos resta utilizar as várias horas diárias de trânsito adicional, concedidas gentilmente pelo Maluf, para refletir sobre nossa trouxice coletiva. Domingo de Carnaval, aliás, é ideal. É o dia do ano em que o novo trânsito é calmo de manhã.

Texto Anterior: Mãe de 20 anos perde três filhos
Próximo Texto: Real faz cair mortalidade, diz a Pastoral
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.