São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 1995
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Assim falava Macunaíma...

ROBERTO CAMPOS

"Confusão das línguas do bem e do mal vos ofereço esse sinal como a marca do Estado" — Nietzche, em "Assim falava Zarathustra"

Mal foram enviadas ao Congresso Nacional as primeiras propostas do governo para a reforma de dispositivos da Constituição de 1988, e antes mesmo que se conheçam os projetos de lei que necessários para resolver problemas criados por essa "Constituição besteirol", voltam à tona posturas obscurantistas que se conhecem desde 1985. Podemos classificá-las basicamente em quatro categorias: (1) as posições idelológicas de esquerda; (2) a persistência de idéias populistas e nacionalistas típicas dos anos 50 e 60; (3) a pressão dos interesses corporativos e patrimoniais das empresas e da burocracia do Estado; e (4) os efeitos paralisantes do atual sistema eleitoral e partidário sobre um bom número de membros do Congresso.
As esquerdas não têm conseguido aumentar significativamente seus números no Congresso nem nos governos dos Estados e Prefeituras (nem, aliás, nos legislativos estaduais e municipais). Fenômeno, de resto, hoje mais ou menos universal. E nas últimas eleições, sofreram uma derrota acachapante frente a um candidato à presidência que se apresentou com um programa ortodoxo, dentro da linha mundial de economia de mercado, abertura econômica, estabilidade da moeda, e "reengenharia do Estado", para torná-lo mais eficiente e menos opressivo e corrupto.
Temos de reconhecer que a situação das esquerdas brasileiras, depois da desintegração do Bloco soviético e da rejeição mundial das idéias econômicas socialistas, ficou bastante embaraçosa. Não tendo mais alguma idéia respeitável para o gasto, o papel que lhes sobra, agora, é o de amolar os outros ao máximo. É uma forma de chamar a atenção sobre si e, quem sabe, aqui ou acolá, pegar uma beirada...
O populismo e o nacionalismo são um pouco mais complicados, porque têm origens distintas, mas ficaram presos a um casamento de conveniência desde os tempos de Stalin, que manipulava as chamadas "frentes populares", primeiro em busca de apoio contra a ameaça nazista, e depois, como arma tática de propaganda anti-americana e anti-ocidental na "Guerra Fria". Teve mais êxito no Terceiro Mundo que na Europa, pela boa e simples razão de que as massas européias viam o que estava acontecendo com os países "socializados" pela ocupação militar soviética, e com os trabalhadores destes países quando reclamavam um pouco mais de liberdade.
Já o nacionalismo é um fenômeno mais antigo, mas que, no período de entre-guerras, esteve associado principalmente aos regimes "de direita" e ao militarismo, sobretudo na Itália e na Alemanha, onde se combinou, na ótica dos conflitos externos, com concepções de auto-suficiência econômica. Sua significação não deve ser menoscabada. Depois da Segunda Guerra, o nacionalismo serviu, durante algum tempo, como mobilizador político das massas, nas lutas de independência das antigas colônias e, na América Latina, como propulsor da ideologia da industrialização. O que não é difícil de compreender, porque o mundo estivera, durante mais de 30 anos, num processo de crises brutalmente traumáticas, e os países menos desenvolvidos que já possuíam a independência política tinham pressa de encontrar atalhos para o desenvolvimento acelerado. Em muitos deles, entretanto (e no Brasil, em especial), o nacionalismo tendeu a associar-se a movimentos populistas, ao mesmo tempo que servia como pretexto ideológico de grupos militares que queriam assumir o controle do Estado.
Essa dupla corrente, nacionalista e populista, está hoje fora de moda em praticamente todo o mundo porque se revelou ainda mais inconsistente e incompetente do que as esquerdas tradicionais, deixando uma herança de governos desastrados e corruptos. Mas, tanto quanto as esquerdas, estão na situação dos Bourbons, depois da queda de Napoleão, dos quais Talleyrand dizia que "não esqueceram nada, nem nada aprenderam". Na verdade, é preciso muita inteligência para saber amortizar e depreciar idéias na medida da sua obsolescência.
E a inteligência não é mercadoria com excesso de oferta... O nacional populismo ficou preso, como peru de roda, num círculo de giz. Mas nem por isso deixa de ter capacidade de atrapalhar onde menos se espera, porque um dos problemas da burrice é a sua imprevisibilidade...
Os interesses corporativos e patrimoniais das empresas e da burocracia do Estado utilizam, conforme calhe, o nacionalismo e a retórica das "conquistas sociais" —que são, na verdade, conquistas ou preservação de vantagens para si mesmas. Esses são realmente difíceis de lidar, porque não estão perdidos nas idéias e princípios. Pelo contrário, sabem o que querem, e o sabem muito bem. Eles formam a nova e poderosíssima "burguesia do Estado". Apropriam-se da coisa pública com uma sem-cerimônia possivelmente sem paralelo em qualquer nação medianamente civilizada, ajudados, nisso, por um sistema jurídico que cobre com um formalismo extremo de "direitos adquiridos" o que não passa de descarados assaltos ao dinheiro do povo. Não há exemplo, que eu conheça, de país onde remunerações de dezenas de milhares de dólares mensais sejam conquistadas judicialmente por ex-servidores dos governos e dos legislativos, sobretudo de Estados e Municípios, assim como empregados de empresas estatais. As leis que dão tais vantagens malandras só o são, na verdade, numa ótica puramente formalista. Na substância, elas agridem a Constituição, a consciência jurídica e a moral. São "abusos adquiridos" e não "direitos adquiridos".
Mas em defesa de osso, cachorro embravece feio, e parece que estamos ouvindo a versão do "Manifesto Comunista" atualizada pela nossa "Nomenklatura": -privilegiados de todo o setor público, uni-vos! Em breve veremos na televisão sindicatos de estatais, por elas financiados, insultando os parlamentares que querem extinguir os monopólios!
Nos países ex-socialistas o povo se encheu. Mas aqui na terra de Macunaíma, não tem problema. Há sempre a desculpa do "social" e do "estratégico", slogans polivalentes que servem para ocultar safadezas corporativistas.
Nada disso, no entanto, seria decisivo, porque o governo de Fernando Henrique Cardoso recebeu um mandato revolucionariamente claro: o povão quer moeda estável para a economia crescer, quer segurança, quer o fim da mentirada e do empulhamento político, quer probidade. No duro, no duro, é a mesma coisa do que "perestroika" e "glasnost". Com um mandato desses, e com a lucidez que lhe é reconhecida, o presidente tem nas mãos os meios básicos para levar adiante o seu programa.
Os efeitos paralisantes do atual sistema eleitoral e partidário sobre muitos membros do Congresso Nacional não devem, porém, ser subavaliados. E é preciso ver as coisas com realismo. O político tem de eleger-se. Sem mandato, estará fora do jogo. O atual sistema proporcional para a Câmara dos Deputados (e para os legislativos estaduais e municipais) tem dois aspectos negativos: força o parlamentar a ir catar votos por todo o seu Estado, e deixa-o exposto a pressões dos grupos de interesses mais articulados e a propostas demagógicas. E esvazia os partidos, porque obriga os deputados a disputarem votos uns às custas dos outros. É claro que cada candidato tem os seus redutos, e que os "puxadores de legenda" são apreciados pelos que têm menos eleitores.
Os membros do Congresso, na sua maioria, têm espírito cívico. Mas o peso da opinião pública é decisivo quando estão em jogo, como hoje, profundas mudanças constitucionais. O governo tem o mandato popular para fazê-las, e a composição do Congresso espelha a vontade popular. Mas convém que faça um esforço maior para explicar bem ao povo as razões e os efeitos das reformas. O apoio que o real recebeu da população mostrou que esta sabe escolher. E o apoio do povo é o que permitirá impedir que as quatro categorias de problemas que examinamos acima possam combinar-se para reduzir o alcance das reformas necessárias do Estado brasileiro.

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