São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 1995
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O batismo do mundo segundo Wittgenstein

JOÃO VERGÍLIO GALLERANT CUTER

Até aqui, nada de extraordinário. Se nos perguntamos, porém, como poderíamos descrever o resultado desse processo, nossa tendência será, quase que certamente, recorrer às associações mentais. O que aconteceu, diríamos, é que a criança associou mentalmente o som à coisa. E, neste ponto, começa o calvário do mentalismo.
Que coisa? As cadeiras que ela viu? E as que ela ainda não viu? Não deverá, também, chamá-las pelo mesmo nome? (O mentalista acusa o golpe, mas volta à carga: não se trata apenas de associações mentais, mas de associações entre sons e imagens mentais. Ou, de forma ainda mais ousada: associações mentais entre imagens sonoras —também mentais— e um ponto num sistema —mental, naturalmente— de relações.)
Prossegue o calvário: Que tipo de imagem? Uma cópia exata? De qual cadeira? Do que elas têm em comum? E se a criança estiver diante de uma cadeira que não tem alguma daquelas características? Há um conjunto de características que todas compartilham? Que conjunto é este? (Aqui intervêm uma série de derrotas humilhantes.) E esse esquema ou imagem mental —seja ele lá o que for— não teria, ele também, que ser interpretado? Não teria que ser aprendido? E aprender não significa, segundo você diz, associar? O que com quê? (Recomeça a surra, agora com o auxílio da Terceira Cadeira.)
E suponha que você pudesse verificar se a criança tem ou não alguma "imagem" desse tipo na cabeça (por meio, digamos, de algum tipo muito avançado de exame cerebral). E, apenas por hipótese, suponha que você verificasse que ela não possui qualquer imagem semelhante (ainda que remotamente) a uma cadeira. E que, apesar disso, ela continuasse a chamar cadeiras de "cadeira". Você diria que aquilo prova que ela não entende a palavra cadeira? (Sem aquele "exame avançadíssimo no cérebro", então, jamais saberemos se alguém está entendendo o que falamos...) Ou será que você diria que ela entende perfeitamente a palavra apesar de não possuir a imagem? (E, neste caso, o que você está admitindo é que a imagem é totalmente irrelevante enquanto critério para o entendimento da palavra...)
A idéia de que o passo fundamental na constituição do sentido seria dado por uma associação que o indivíduo faria mentalmente entre palavras e coisas é suficiente, sem dúvida, para posicionar o indivíduo (ou, mais especificamente, a "mente humana") no centro do jogo da racionalidade.
É no interior da linguagem, no interior de determinadas regiões da linguagem, que se estabelece a distinção entre o verdadeiro e o falso, entre a certeza e a dúvida, entre o certo e o errado, entre a realidade e a ficção. Dizer que a linguagem poderia constituir-se apenas com base neste jogo de associações privadas, que o indivíduo poderia, idealmente, criar e jogar consigo próprio, é dizer que o indivíduo humano é medida do verdadeiro e do falso, da certeza e da dúvida, do certo e do errado, da realidade e da ficção.
Se, na expressão "indivíduo humano", damos ênfase à palavra "indivíduo", estaremos metidos na cela do relativismo desvairado que, no "Teeteto", Platão põe na boca de Protágoras; se a ênfase recair sobre a palavra "humano", teremos, então, o horizonte cheio de promessas da Razão incorporado em cada um de nós. De Protágoras, suponho, ninguém sente saudades. Mas, com a Razão clássica, é diferente. Há coisas demais a serem deixadas no caminho. A questão é saber exatamente o que nos foi deixado em troca. E, ainda que não se tenha, aqui, uma resposta clara, já sabemos, a esta altura, que uma outra questão está indissoluvelmente ligada a esta.
O que dá vida ao símbolo? O que vem a ser o sentido proposicional? A resposta de Wittgenstein, nas "Investigações Filosóficas" é —o uso. Entender a palavra cadeira não é nada além de saber usá-la nas situações adequadas. É a partir do momento que a criança aprende a utilizar uma expressão que esta expressão adquire aquilo que tendemos a chamar de "vida". Ela deixa de ser um som entre outros e passa a ser um som significativo.
Este uso, porém, não deve ser entendido como uma exteriorização de regras que cada indivíduo guardaria "dentro de si", na alma, na mente, no cérebro, ou sabe-se lá onde. Não é difícil, creio, imaginar o roteiro de "O Calvário - Parte 2". (O que é uma regra? Uma fórmula? E que regra devo seguir para aplicá-la? Um diagrama? E que regra seguir para interpretá-lo? etc.)
Não que o uso da linguagem não seja uma atividade sujeita a regras. Se a linguagem não envolvesse regras, não haveria como distinguir o uso correto do uso incorreto de uma expressão. Esta distinção, porém, impede que eu, o indivíduo humano, entre sorrateiramente pela porta dos fundos para reocupar o posto de medida de todas as coisas. O indivíduo, isolado, pode no máximo ser medida do que lhe parece correto ou incorreto.
A vida da linguagem, porém, exige distinção mais forte. O que permite o uso da linguagem no comércio social é o fato de que o arbítrio a respeito do que é e do que não é correto coloca-se numa instância que escapa ao alcance dos indivíduos isolados —aquela instância, justamente, em que podemos dizer: "isto pode até lhe parecer correto, mas não é". A linguagem só pode ganhar vida num terreno em que tal distinção seja possível. Na alma, na mente ou no cérebro, ela certamente não é.
Aceitar o argumento das "Investigações Filosóficas" é, em grande medida, repassar a um "nós" as tarefas que a filosofia clássica atribuíra ao "eu". E é aceitar, também, que só por um feliz acaso esse "nós" coincidiria com a espécie humana. As diversas pretensões de validade que orientam a vida humana (a verdade, a sinceridade, a correção moral, a beleza) teriam escapado das gaiolas de Protágoras apenas para cair nas celas mais amplas da cultura, da época, dos paradigmas científicos ou da última moda.
Já não há um mundo estável à nossa frente, povoado de objetos e fatos, esperando que a linguagem os recubra, nem um eu postado à porta do universo com o metro da verdade. O mundo das "Investigações Filosóficas" é, definitivamente, o nosso mundo e, se a racionalidade puder ser reconquistada, é dentro dele, apenas, que poderemos encontrá-la.
Por tudo isso, pela importância que tem para o pensamento contemporâneo, eu deveria encerrar este artigo saudando a publicação que a editora Vozes nos oferece. Não é o caso. Mais uma vez, é preciso constatar a triste realidade: subdesenvolvimento não é apenas falta de dinheiro, mas o péssimo uso do pouco que se tem. Já havia, no mercado, duas más traduções das "Investigações Filosóficas": a publicada na coleção Os Pensadores e outra, portuguesa, patrocinada pela Fundação Calouste Gulbenkian. Agora, temos três.
Não me refiro, é claro, apenas a minúcias (erros de digitação ou de português). Elas poderiam, sem dúvida, ser apontadas e, para quem faz uma primeira leitura do livro, podem representar um obstáculo sério (pontos de interrogação, por exemplo, foram substituídos por pontos finais em mais de uma passagem). Não me refiro, tampouco, a opções que, na minha opinião, são menos felizes (como traduzir "meinem", do começo ao fim, por "ter em mente").
Refiro-me, por exemplo, ao fato haver, em média, um parágrafo a cada três páginas que, na tradução, tornou-se, ou completamente incompreensível, ou completamente discordante do original. Refiro-me a sentenças inteiras que foram completamente suprimidas, ou, ainda, à figura do parágrafo 48, cujas cores foram substituídas por uma legenda que, ela mesma, está completamente incorreta.
A tradução não é irrecuperável, mas, tal como está, não passa de um rascunho necessitando urgentemente de uma revisão técnica que, apesar de alardeada na página de rosto, na melhor das hipóteses não foi feita. A tradução inglesa, da sra. Anscombe, é excelente, bastante barata e facilmente encontrável.

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