São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 1995
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O exilado da poesia

HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Influenciado por Eliot e Stevens, o poeta Hart Crane poderia, quem sabe, ter transcendido a obra dos precursores. Da mesma forma, Rimbaud, o herdeiro de Victor Hugo e Baudelaire, foi potencialmente um poeta ainda mais forte do que eles. E a identificação entre Crane e Rimbaud ganha um matiz particularmente comovedor neste contexto, ao nos lembrar de perdas imaginativas tão grandes quanto as que sofremos com a morte de Shelley e Keats.
Mas o escândalo de Rimbaud, que já seria considerável em qualquer outra tradição poética, fica ampliado contra o pano de fundo de um certo decoro, em termos de forma e retórica, da poesia romântica francesa —como, aliás, de toda tradição da poesia francesa. Uma "crise" na poesia francesa não seria mais que uma marola nas águas da tradição anglo-americana, infinitamente variada e heterodoxa.
Deixando de lado Rimbaud e algumas figuras mais recentes, a poesia francesa nunca se caracterizou pelos titãs excêntricos, que surgem para estabelecer uma ordem inteiramente nova. Rimbaud foi um grande inovador; mas não pareceria tão original se tivesse escrito na língua de Blake e Wordsworth, de Browning e Whitman.
"Une Saison en Enfer" aparece 80 anos depois de "The Marriage of Heaven and Hell", de Blake; e as "Illuminations" não chegam a desconstruir a identidade poética mais radicalmente do que os monólogos de Browning, ou "Song of Myself", de Whitman.
É preciso, sim, ser absolutamente moderno, como dizia Rimbaud, mas cem anos depois já se tornou claro que ninguém será mais absolutamente moderno do que o Wordsworth do "Prelúdio" e dos poemas de 1802.
Eu costumava pensar que a verdadeira diferença entre a poesia inglesa e a francesa era a ausência dos equivalentes franceses de Chaucer e Spenser, Shakespeare e Milton. Uma diferença ainda maior, me parece agora, é Wordsworth, cuja espantosa originalidade vem encerrar uma tradição que expande, sem solução de continuidade, de Homero a Goethe.
Rimbaud não teve falta de precursores fortes no último Hugo e em Baudelaire; mas seu potencial era tão grande que teria se beneficiado de um combate ainda mais feroz, como o de Wordsworth com Milton e, em menor escala, com Shakespeare.
Os mais fortes dos poetas franceses, pelo menos até Valéry, parecem finalmente confrontar um precursor compósito: Boileau-Descartes, metade crítico clássico, metade filósofo. Isto provoca reações muito diversas das de quem tem de lutar por um espaço literário com Milton ou Wordsworth. A diferença, mesmo para um exilado da poesia, como Rimbaud, estabelece certos limites da linguagem e da imaginação.
Todos os críticos estão de acordo que esses limites ficam mais perto de serem transcendidos em "Une Saison en Enfer" e "Illuminations". Leo Bersani, ao defender convicentemente a simplicidade das "Illuminations", afirma que a grandeza de Rimbaud está nas suas formas de negação. Segundo ele, a verdadeira ambição do poeta seria a de reduzir ao máximo o significado da poesia.
Se tomamos a fórmula de Rimbaud — Eu é um outro— como sua fórmula central, então são as "Illuminations" que se tornam a sua obra mais importante. Mas uma vez que a poesia tem seu lugar entre a verdade e o significado, este sonho de negação literária talvez não seja mais que um sonho. O que seria um poema se, atendendo às esperanças de Bersani, ele fosse mesmo não-referencial, não-relacional, livre de atitudes, de sentimentos e tons?
Bersani é o primeiro a admitir que a "Saison" está longe de ser um poema dessa ordem; revela-se ali, de forma irresistível, uma identidade coerente, o que não significa uma subjetividade fixa. Aquela figura e topos que nós chamamos de "voz" é tão forte na "Saison" que não há como julgar o poema, exceto como um poema em prosa do alto romantismo, a despeito do que possam ser as "Illuminations".
Bersani idealiza tocantemente as ambições poéticas de Rimbaud; outros críticos, como Kristin Ross, idealizam nobremente seus supostos interesses sociais. De minha parte, estou condenado a escutar Rimbaud da perspectiva do romantismo. E o poeta que eu leio tem todas as desordens da visão romântica, como também boa parte dos significados, que para mim estão longe de serem sociais.
A violenta originalidade de Rimbaud —que aos 16 anos era capaz de escrever Le Bateau Ivre, refazendo à sua maneira o Le Voyage de Baudelaire— não está dirigida contra o significado, mas contra todo e qualquer poeta, incluindo Baudelaire, que venha legar a Rimbaud um significado que já não fosse seu.
Mais até do que o Victor Hugo da última fase, em quem ele reconhecia, um pouco a contragosto, a faculdade poética da visão, Rimbaud não tolera autoridade literária de espécie alguma. Talvez, se fosse possível combinar Hugo e Baudelaire num único poeta, Rimbaud tivesse tido um precursor capaz de induzir nele alguma angústia mais útil, mas o hábito anglo-americano de criar para si mesmo um precursor poético imaginário e compósito não estava disponível para o criador da Saison.
Tirando Blake, nenhum grande poeta foi tão precoce quanto Rimbaud, em toda a tradição ocidental. Assim como Blake, um poeta extraordinário aos 14 anos, Rimbaud, muito ao contrário dele, já abandonara a poesia aos 19. Mercador e traficante de armas na África, morto aos 37 anos sem ter escrito uma linha de poesia na segunda metade da vida, Rimbaud acabaria se tornando o emblema mítico do poeta moderno como imagem da alienação.
O mito obscurece um tradicionalismo mais profundo, em especial no que toca à "Saison". A despeito das diferenças implícitas no tardio romantismo francês, Rimbaud é um poeta do alto romantismo, tanto quanto Blake e Shelley, ou Victor Hugo.
" Une Saison en Enfer" já foi descrito como um poema em prosa, ou "récit"; poderia também ser descrito como uma "anatomia" em miniatura, no sentido de Northrop Frye. Talvez fosse melhor vê-lo como um evangelho gnóstico tardio —à mesma maneira de seu modelo recôndito, o Evangelho de S. João.
Seria grotesco imaginar Rousseau lendo a "Saison"; mas, num sentido claro, Rimbaud é mesmo um de seus descendentes diretos. Rimbaud se esforçava para negar qualquer forma de herança —mas como negar o romantismo? Sua negação do catolicismo não é nada senão romântica, especialmente em suas ambivalências.
O padrão que se desenrola nas nove seções da "Saison" teria soado familiar para qualquer gnóstico alexandrino do século 2. Rimbaud começa com uma queda, que é também uma criação catastrófica, abandonando a festa da vida, mas lembrando ainda "a chave do festival", a chave da caridade.
Mais adiante, num mundo tolhido de revelação, a barbárie desregrada vai lhe parecer preferível a uma suposta civilização. Esta é a dialética do gnosticismo libertino, o que me leva a pensar que a obra mais próxima de Rimbaud na tradição americana é a novela "Miss Lonelyhearts", de Nathanael West —uma versão esplendidamente sórdida da velha doutrina gnóstica de "redenção pelo pecado".
O inferno de Rimbaud tem lampejos de divindade e parece casado ao céu de uma forma literal e muito diferente da dialética irônica de Blake. Deus e o diabo, aqui, são nomes diferentes de um mesmo espírito de lassidão, e é assim que Rimbaud se prepara para sua descida mais funda no delírio e nas memórias de sua vida com Verlaine.
Quando eu penso na "Saison", penso antes de mais nada no brilho doentio de Verlaine, a Virgem Tola, dirigindo-se a Rimbaud, o Noivo Infernal. Rimbaud, se quisesse, poderia ter sido o mais cruel dos humoristas da literatura francesa. O pobre Verlaine foi empalado para todo o sempre como essa masoquista bem arrumada, a Virgem Tola, indigna seja de salvação ou danação.
A autoridade da empalação é ainda maior depois do retrato das aventuras do Noivo Infernal pela alquimia poética —intencionalmente ridículas, tanto quanto os maneirismos da Virgem. Mas o mito de Rimbaud é tão forte que o seu próprio repúdio à divindade e à magia não chegam, afinal, a nos persuadir. Lembrando a "Saison", não há quem não ria meio amarelo da figura de Verlaine como a Virgem Tola, ao mesmo tempo em que todos relembram, com respeito, precisamente daqueles experimentos estéticos aos quais Rimbaud renuncia com tanto vigor.
Para escapar do inferno, Rimbaud descobre que precisa livrar-se do dualismo gnóstico, que não é tão diverso do cristianismo gnóstico de João. Mas a tentativa de se livrar do cristianismo envolve também as duas grandes bestas sagradas da Europa no século 19: o idealismo transcendental e a religião da ciência, e Rimbaud vai acabar descobrindo que ninguém faz troça impunemente, nem de Rimbaud, nem de Deus. A penúltima seção restaura seu gnosticismo, seu sentido de que o que ele tem de melhor e mais antigo data de antes da Criação-e-Queda.
Anunciando o nascimento do novo trabalho e da nova sabedoria, Rimbaud chega ao notável Adieu, com seu famoso aforisma: "É preciso ser absolutamente moderno" —verdadeira epígrafe para as obras completas do herdeiro gnóstico de Rimbaud, Hart Crane. Já não mais um mago ou um anjo, Rimbaud se dá de volta à terra, um camponês, como seus ancestrais. Pensar na terra está longe de ser uma formulação gnóstica e o conhecido trecho final da Saison abandona o gnosticismo de uma vez por todas, numa extraordinária passagem ao monismo visionário: —eu vi o inferno das mulheres, lá embaixo; —e terei a chance de possuir a verdade numa alma e num corpo.
O que Rimbaud viu "lá embaixo" —em sua relação com Verlaine—, o "inferno das mulheres", é precisamente o romance edipiano do qual ele procurava escapar. Possuir a verdade numa única mente e num único corpo —o seu próprio— é uma revelação narcisista, semelhante à de Walt Whitman, no final de Song of Myself. Tanto o cristianismo quanto o gnosticismo são rejeitados, então, assim como a hetero e a homossexualidade.
A "Saison" acaba numa torção para dentro, mais próxima de Whitman do que de Hugo ou Baudelaire: "Agora é madrugada. Recebamos todos os influxos de vigor e ternura verdadeira. E ao nascer do dia, armados de uma paciência ardente, entraremos nas lindas cidades".
É uma passagem digna daquele poeta que o falecido James Wright chamava de "nosso pai, Walt Whitman". Ninguém seria capaz de murmurar um "nosso pai, Arthur Rimbaud", mas podemos lembrar da devoção de Hart Crane, em igual medida, por Whitman e por Rimbaud, e rendermos graças a ele, mais uma vez, por nos ensinar alguma coisa sobre a nossa linhagem.

Tradução de ARTHUR NESTROVSKI

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