São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 1995
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A direita religiosa dos EUA deturpa liberalismo

Nossa época restringiu o sentido do liberalismo à economia

MARIO VARGAS LLOSA
DO EL PAÍS

Acusada de querer introduzir um curso de masturbação nas escolas públicas dos Estados Unidos, acaba de ser destituída de seu cargo a ministra da Saúde do governo Clinton, a doutora Jocelyn Elders. Sem a presença dessa magnífica mulher, a coleção de calamidades que constituem o gabinete norte-americano se tornará, além disso, maçante ao extremo. Era ela quem sempre injetava um toque de cor naquela equipe cinzenta, suscitando, de quando em quando, escândalos monumentais com sua temerária franqueza e seus empenhos reformistas.
Até agora o presidente a havia respaldado, mas, depois da esmagadora vitória do Partido Republicano nas eleições legislativas, ele não se atreveu a fazê-lo. Ademais, os despojos da combativa ministra, que Clinton atirou à matilha conservadora —refiro-me à chamada "direita religiosa", de crescente influência entre os republicanos—, que tomou posse de ambas as Câmaras decidida a purgar a administração inteira de liberais e contando com a força necessária para fazê-lo, só irão aplacá-la momentaneamente.
São conhecidos a confusão e os mal-entendidos gerados em inglês pela palavra liberal, que nos Estados Unidos perdeu seu sentido clássico de pessoa partidária da democracia política, da liberdade de idéias e costumes e do mercado, e adquiriu o de radical de esquerda e até mesmo socialista. A ex-ministra é uma liberal na acepção britânica e oitocentista da palavra, e o é, também, de modo muito próprio seu, na versão contemporânea norte-americana, devido a seu radicalismo e sua paixão libertária.
Essa ministra sem papas na língua, que sempre se empenhou em dizer o que pensava e em fazer o que dizia, era uma "avis rara" no mundo da política e foi, desde o dia de sua indicação, o bode expiatório desse setor conservador, intolerante e obtuso em assuntos religiosos e morais e algo racista e xenófobo, que foi se organizando rua por rua e bairro por bairro, até conquistar uma força eleitoral decisiva, como se verificou nas últimas eleições.
Esse setor tradicional, provinciano, patrioteiro e pudibundo sentia seus dentes rangerem de indignação quando a dra. Elders fazia declarações como esta, recente, numa entrevista ao "U.S. News & Report": "Se eu achasse que dessa maneira eu poderia fazer com que os jovens usassem preservativos, eu não hesitaria em colocar uma coroa de camisinhas na cabeça e nunca mais tirá-la".
Quando era diretora de Saúde de Arkansas, introduziu cursos de educação sexual nas escolas, como parte de uma campanha de prevenção da Aids que foi tão eficaz que foi posteriormente imitada em quase todos os outros Estados, e impulsionou um programa de planejamento familiar para prestar assessoria e serviços a todas as mulheres que os requisitassem, de modo que ninguém, na área sob sua responsabilidade, tivesse mais filhos do que os que realmente queria e podia ter.
Com a mesma tranquila convicção com que resistiu aos ferozes ataques das igrejas e das organizações laicas anti-abortistas, soube resistir às pressões dos fabricantes de cigarros que se opunham a sua política de divulgação maciça das descobertas científicas sobre os estragos provocados pela nicotina.
Desde que assumiu o Ministério, Jocelyn Elders foi muito clara em relação ao que se propunha a fazer. Aos senadores que a entrevistaram, advertiu: "Quero ser a voz e os olhos dos pobres e desamparados desta sociedade". Ela o foi, tomando iniciativas e fazendo propostas que frequentemente iam muito além do que o governo Clinton estava disposto a fazer.
Assim, foi a primeira funcionária norte-americana de seu escalão a admitir o fracasso da política de repressão ao consumo de drogas e a propor sua legalização, a fim de acabar com a criminalidade gerada pelo narcotráfico —que cobre de sangue sobretudo os bairros marginais e os guetos— e de reorientar os gigantescos recursos hoje investidos na repressão em direção a programas pedagógicos e preventivos e à reabilitação das vítimas.
Nossa época, que é uma de enormes mal-entendidos políticos, restringiu o liberalismo ao que é sua exclusiva expressão econômica: a redução do Estado mediante a privatização da riqueza e do mercado, em lugar do intervencionismo e dirigismo estatais defendidos por socialistas e comunistas.
Para o ideário liberal, o Estado pequeno e o livre mercado não têm outro objetivo senão garantir a prosperidade do conjunto social e a liberdade dos indivíduos, a quem a democracia deve assegurar, paralelamente, margens sempre crescentes de autonomia dentro de uma coexistência marcada pelo pluralismo e pela tolerância.
Mas, nos EUA e em muitos outros países, a defesa do Estado pequeno e do livre mercado foi se convertendo, cada vez mais, num monopólio de forças políticas conservadoras, indivíduos ou partidos que, nos campos cultural, religioso, social e moral, por exemplo, não são nada tolerantes e postulam teses dirigistas, censuradoras, intervencionistas ou nacionalistas, que representam a própria negação do espírito e da doutrina liberais.
E, ao mesmo tempo, a defesa do pluralismo, da diversidade e da tolerância no que diz respeito às instituições e aos costumes foi aparecendo cada vez mais como traço definidor da esquerda democrática que, em matéria econômica, continua sendo inimiga do mercado, desconfiada da propriedade privada, partidária do Estado grande e intruso, e convencida de que a justiça social consiste na redistribuição da riqueza existente, mesmo que isso signifique a asfixia do sistema que a produz. Essa herança ideológica da utopia coletivista, que ainda impregna tantos setores políticos de esquerda, sem dúvida levará muito mais tempo para desaparecer do que seus vestígios políticos ainda remanescentes (Cuba, Coréia do Norte, Vietnã).
Mas eu não perco as esperanças de que, agora que o comunismo deixou de ser o principal adversário da cultura democrática e que foi substituído, neste papel, pelo nacionalismo e os integrismos religiosos, o verdadeiro rosto do liberalismo vá se restabelecendo pouco a pouco, em consequência do novo ordenamento de forças, como uma proposta indivisível da liberdade política e econômica, proposta essa que, ao mesmo tempo que defende os cidadãos individuais contra os abusos e intromissões do monstro frio do Estado, batalha incansavelmente pelos direitos de cada um a escolher seu próprio destino e praticar suas idéias e seus costumes com a máxima liberdade e a única restrição, quando a pratica, de não atropelar o direito dos outros.

Copyright Mario Vargas Llosa. Os direitos internacionais deste texto pertencem ao jornal El País. O Mais! publica quinzenalmente a coluna "Pedra de Toque"

Tradução de CLARA ALLAIN

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