São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 1995
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Todas as formas do amor

CONTARDO CALLIGARIS; ELIANA CALLIGARIS
ENVIADOS ESPECIAIS A COLUMBUS

Faltavam menos de 24 horas para sair: destino Columbus, Ohio, sede inesperada de "Anything for Love" (Tudo por amor) - Primeira Convenção Anual de Erotismo, de 9 a 12 de fevereiro de 1995. E ainda tentávamos imaginar o que seria. Sentados no Old Town Bar, na rua 18, entre Park e Broadway, sobre umas cervejas da estação ("season special"), fazíamos a conta das possibilidades.
Podia ser um macroevento comercial, onde produtores, atacadistas e revendedores do sexo e de suas próteses fariam valer seus produtos e o público estaria nem tanto comprando —para isso catálogos e lojas bastam— quanto reafirmando sua dependência: não terás acesso a uma vida sexual sem honrar o objeto e o consumo.
Poderia ser uma gigantesca suruba onde, tranquilizados pelo consenso geral e pela segurança que um encontro organizado garante, uma centena de pessoas de sexos e fantasias diferentes teriam a ocasião de se encaixar.
Poderia também ser uma tentativa triste e provinciana para animar, no meio-oeste norte-americano, uma paródia das noites novaiorquinas ou californianas, supostamente liberadas e felizes.
Não foi nada do que prevíamos.
Chegados na quinta à noite, passamos na recepção do Ramada University Hotel e fomos para o quarto. Por algum acaso, o chão do corredor era semeado de cubos de gelo, como pedrinhas deixadas pelo Pequeno Polegar no caminho da orgia. Nossa terceira (ou, no melhor dos casos, segunda) hipótese parecia se realizar.
Perplexos, chegamos na sala onde a convenção ainda recebia e registrava, embora fosse já tarde, seus inscritos. Holly Teague, organizadora, estava sentada na mesa de inscrição, circundada por papéis e por preservativos oferecidos pela Ramses —expositor do evento. Tinha sua filha Darcy, de cinco anos, nos braços. De repente, o espírito dos anos 60 parecia prevalecer: não há nada para esconder, nem mesmo (ou sobretudo) das crianças, pois tudo é natural. Quem sabe a convenção fosse então, mais do que uma suruba, ou um empreendimento comercial, uma espécie de Woodstock do sexo onde o essencial seria o triunfo do espírito comunitário.
Aprendemos como suspender um sujeito pelos pulsos sem pôr em risco sua circulação, como transformar em sex shop S&M a loja de ferragens mais perto de casa, como confeccionar uma mordaça barata com uma bola de golfe, como encontrar no manual dos "escoteiros" todo saber necessário sobre os nós, como modificar a forma do corpo pelo uso de espartilhos, que tipo de açoite usar sobre os órgãos genitais e alhures e com quais efeitos, como redigir um contrato de submissão, como estabelecer um safeword etc.
A platéia, amistosa e bem disposta, forneceu sem dificuldades voluntários para demonstrações. Fato notável que pode inspirar nossa vida intelectual, praticamente todos os palestrantes presenciavam com atenção e prazer os seminários dos outros, embora sem dúvida não houvesse muito de novo para eles aprenderem. Prevalecia o sentimento que a verdadeira aposta, além de transmitir informações aos eventuais neófitos, era celebrar juntos a possibilidade pública e social de falar dos estranhos caminhos de seus desejos.
O dia inteiro, sem interrupção, estava aberta a área de vendas: livros, revistas, uma panóplia completa e variada de roupa de couro, látex, borracha e malha de metal, espartilhos, açoites, instrumentos mais complexos tortura, compressores de testículos, pinças para mamilos, a possibilidade de encomendar peças maiores, cruzes de madeira para amarrar, gaiolas de metal, e a ocasião de se informar sobre eventos, associações, e manifestações do sexo alternativo.
Mas o evento dificilmente poderia ser considerado comercial: à exceção de uma banca de espadas medievais, os vendedores todos eram participantes convictos, militantes da cena, e assíduos frequentadores (quando não palestrantes) de seminários e festas.
Na área de vendas, a partir do segundo dia, as coisas esquentaram. De vez em quando, a demonstração de uma roupa e sobretudo de um açoite se tornava jogo aberto. O público oferecia um olhar mais que respeitoso: admirativo e atento. Alguns corriam, segundo suas próprias sugestões ou sugestões de outros, para pegar nas bancas de venda este ou aquele açoite que melhor convinha ao momento e ao lugar que estava sendo espancado. Nenhum vendedor parecia colocar a integridade de sua mercadoria acima das exigências do gozo. Ao contrário, parecia nestes momentos que o prazer de quem jogava era um interesse coletivo. Quando um grito finalmente assinalava o gozo do(a) açoitado(a), a área de vendas explodia em sincero aplauso.
A convenção acabou sendo, em sua maioria, S&M e, mais precisamente, S&M heterossexual. Mesmo assim, outras sexualidades alternativas estavam representadas. A tolerância foi surpreendente. Culminou quando, no sábado à tarde, a mesa de exposição de Girl Friends —uma publicação lésbica— serviu de suporte e teatro para um longo jogo de açoite: uma faca entre os dentes para não gritar, deitada sem particulares cuidados em cima das revistas, uma mulher ofereceu especificamente seu sexo a uma variação de açoites de todas as formas e naturezas. A jovem lésbica de Girl Friends ficou sorrindo na sua mesa; quando esta foi invadida, levantou e assim veio se integrar ao cúmplice olhar do público. Aplaudiu na hora final e, simpaticamente, foi arrumar suas revistas e dispor alguns kleenex em cima dos restos abundantes do gozo da mulher.
Os jantares foram outra surpresa. Mesas redondas, grandes, eram ocasião de conversa. Difícil manter lugares-comuns sociológicos. Havia de tudo, escritores, professores universitários, programadores, comerciantes, funcionários do governo. A qualidade humana, cultural e política da conversa era bem acima da média americana.
As festas não foram orgias. Duas suítes do hotel ficavam disponíveis para quem quisesse se encontrar e jogar junto com os outros, utilizando os objetos adequados (uma cruz para amarrar, uma estrutura de madeira alta para suspender, um banco de igreja transformado em máquina de alongamento forçado etc). Mas na grande sala se dançou, se fez desfile de moda fetiche, concursos de mestres, submissos, de mulheres e homens couro, látex e borracha, e leilão de caridade de objetos oferecidos pelos vendedores.
Na festa da última noite, um imprevisto. Um grupo de jovens estudantes lutadores, hospedados no hotel para um campeonato na Universidade de Ohio no dia seguinte, pedem ingressos. Desprovidos de black-tie ou roupa fetiche —trajes obrigatórios— se arrumam no espírito: de seus cintos fazem colares de couro e como única roupa usam seus jockstraps (cuecas esportivas). Recebidos com aplausos, entram na dança. Mais tarde, na hora do leilão, um deles aceita que as qualidades de um precioso açoite sejam demonstradas sobre suas nádegas. A situação é cômica, o clima é carnavalesco: poderíamos imaginar que a comunidade não gostasse de ver como objeto de derrisão seu emblema mais querido, mas foi o maior sucesso.
A convenção talvez revelasse assim sua primeira significação. Mais do que um momento de troca de informações, mais do que um momento de venda e compra, mais do que uma oportunidade de encontrar parceiros e jogar com eles, ela era a expressão de uma necessidade de socialização, de reconhecimento, de —como diz Sara em sua entrevista— validação. Tratava-se de fazer um grupo para se sentirem aceitos, e juntos endereçarem ao mundo um imenso pedido de reconhecimento.
Por isso é difícil escrever sobre Anything for love, Columbus 95. Toda interpretação parece se transformar em uma recusa do que está sendo pedido: que uma fantasia, uma forma de amor —que facilmente inspiram um pudibundo horror— sejam validadas.
A psicanálise —assim como a entendemos— não tem mesmo porque recusar esta validação. Pois, para ela, não há normalidade do desejo.

CONTARDO CALLIGARIS é psicanalista, autor de Hello Brasil (editora Escuta)
ELIANA CALLIGARIS é psicanalista

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