São Paulo, quarta-feira, 1 de março de 1995
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Herança das cinzas

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO — A quarta-feira de Cinzas era um dos dias que mais esperava. O Carnaval nos pegava na fazenda de Itaipava, para onde o seminário se deslocava logo depois do Natal. Os três dias de folia, lá fora, não chegavam até nós.
Nosso padeiro, Zé Bolacha, caprichava nos pães e tortas, havia sempre o final de um campeonato entre as divisões, quem não tinha esfolado as canelas até então, dificilmente escapava dessas finais —quando valia tudo, inclusive xingar a mãe, desde que fosse em latim.
Não era por isso que esperava o dia de Cinzas. Na véspera, eu examinava mais uma vez as matas que circundavam o açude cujas águas moviam o nosso gerador. A copa das árvores formava a mancha verde que só em alguns pontos era quebrada pelas folhas prateadas das embaúbas.
Quando padre Cipriano mudava os paramentos na sacristia, colocando as casulas roxas no altar, as matas explodiam nas flores roxas que marcavam o topo das quaresmeiras. Era um mistério e, ao mesmo tempo, um deslumbramento. A natureza mandava na liturgia ou a liturgia é que mandava na natureza?
Qualquer que fosse a razão, era cedinho que eu levantava e espiava pela janela do dormitório o milagre anual e roxo. Naquele tempo, a cor tinha a fama de triste. E eu já cultivava excelente mau gosto. Amava aquele roxo que surgia, orvalhado e forte, das entranhas da mata, assombrosa coincidência entre o calendário dos homens e a rotina do mundo.
O roxo na capela e o roxo nas matas anunciavam que as férias acabavam e havia uma certa melancolia, um clima de fim de festa. A disciplina, que já era pouca, ficava mais relaxada e eu podia fugir para o açude. Tentava contar as quaresmeiras: era impossível e, sobretudo, inútil. Até que um dia descobri uma quaresmeira amarela no meio das outras. De início me espantei, ignorava que houvesse variedade na espécie, imaginava que todas deviam ser forçosamente roxas.
Eu me senti roubado. Mesmo assim, fiquei solidário com aquela fronde amarelada, uma amarelo jovem e vegetal, que entre outras coisas me ensinou a ser sozinho.

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