São Paulo, terça-feira, 7 de março de 1995
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Em defesa do Caic

ALCENI GUERRA

O presidente Fernando Henrique Cardoso teve uma vida escolar especial. Frequentou confortáveis escolas de primeiro grau onde desenvolveu seu intelecto e se preparou para as outras etapas do ensino até tornar-se mestre e doutor em sociologia. Sua família de classe média pôde também lhe dar as condições de desenvolver seu privilegiado corpo físico, visivelmente saudável.
Graças a Deus, pois hoje temos um bom presidente.
As demais crianças brasileiras frequentam escolas miseráveis, insalubres e perigosas. Uma em cada quatro dessas escolas não possui banheiro e sequer água de poço.
O mestre Darcy Ribeiro diz que a diferença entre um brasileiro e qualquer cidadão do Primeiro Mundo é o tempo de escolaridade. Não é mais possível fornecer à criança o enorme acervo de conhecimento humano em apenas meio período do dia. Como aplicar nas miseráveis escolas brasileiras o moderno e universalmente recomendado conceito de atenção à criança em tempo integral?
A solução foi encontrada no governo Collor através de uma proposta do ex-governador Leonel Brizola, que eu tive a honra de implantar: os Caics (Centro de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente)!
Dois anos depois a Unesco considerou o projeto como "padrão para a humanidade". O governo FHC rotulou-o de faraônico e o condenou ao desaparecimento. Segundo um importante funcionário, "bem depressa, antes que o ministro da Educação também se apaixone por ele, como aconteceu com Murilio Hingel".
Os Caics só têm um defeito: lembram seus idealizadores —Collor e Brizola—, os dois mais combatidos políticos da atual geração. Eu me coloco neste contexto como um pequeno derrotado, vítima do mesmo preconceito dos Caics. Mas brado aos céus e ao presidente Fernando Henrique:
— Onde o sr. vai encontrar outro projeto tão barato, tão bonito e tão eficiente como o dos Caics? Como pretende aplicar a educação em tempo integral em escolas públicas miseráveis? Será que só as crianças de classe média têm direito a esse tipo de educação? Será que os filhos dos trabalhadores devem ser definitivamente condenados a serem intelectualmente inferiores?
O governo FHC acaba de decretar que as fábricas dos Caics, como produzem construções baratas, vão ser utilizadas para construir outros tipos de aparelhos sociais.
Que as construções dos Caics eram baratas todos sabiam. O deputado federal Luís Roberto Ponte (PMDB-RS) —insuspeito oposicionista de nosso governo— afirmou que economizamos US$ 4 bilhões na sua licitação.
Por que, então, devem ser construídas apenas casas populares em lugar de escolas populares de boa qualidade? Por que não construir tudo com essa boa qualidade e preços mais baixos?
O presidente Fernando Henrique não pode passar para a história como o educador que destruiu um projeto recomendado pela Unesco como "padrão para a humanidade".
Eu sei, o presidente não conhece essa decisão da Unesco, pois a imprensa não a divulgou. O preconceito que me atinge não permite que eu lhe peça uma audiência, mas a visão das crianças que frequentam Caics bem administrados me entusiasma: elas chegam desnutridas, doentes dos dentes aos pés, e logo depois se transformam em crianças felizes com a importância que o Estado lhes dá.
Foi assim no Caic de Paranoá, onde todas as crianças chegaram com a dentição afetada e 50% tinham sinais sérios de desnutrição.
Outras chegam agressivas com a violência do seu meio social e logo se tornam dóceis amantes de sua escola bonita. Foi assim no Caic de Mossoró, onde várias crianças compareceram ao primeiro dia de aula portando peixeiras e depois se tornaram afáveis.
Num Caic, elas podem sonhar em ser iguais ao presidente da República, em ser semelhantes, no Nordeste, às ricas crianças paulistas.
Um Caic —sempre construído junto aos bairros de trabalhadores— incomoda a outras escolas por sua aparência e por sua filosofia, mas isso também é uma grande virtude. Serve para provocar comparações e induzir mudanças.
Não há outro projeto de "educação em tempo integral" disponível no governo. Planejar uma alternativa e executá-la dentro das normas legais tomaria dois anos do já curto mandato de FHC.
Acorde, presidente! Querem lhe tomar o único grande projeto de democratização do ensino de primeiro grau existente no Brasil. Reaja com a sabedoria e a dignidade que aprendemos a admirar no sociólogo Fernando Henrique Cardoso. Interrompa o sepultamento definitivo dos Caics. Dê ao seu ministro da Educação essa preciosa chance de se apaixonar pelo projeto.
Para isso é necessário que ele apenas o estude, como aconteceu com o ex-presidente Itamar Franco, que começou o mandato anunciando o fim dos Caics e depois o transformou no grande projeto de seu governo.
Se fôssemos pusilânimes, estaríamos em silêncio aguardando os futuros reflexos políticos de tão desastrada decisão. Acabar agora com os Caics nos daria, no futuro, a necessária comparação eleitoral entre dois governos. Isto não nos interessa. As crianças são mais importantes.
Salve o projeto, presidente!

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