São Paulo, sexta-feira, 17 de março de 1995
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Previsibilidade do arroz com feijão mata

NINA HORTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Tenho uma aula de conversação com uma inglesa fascinante, a Claire Charity. É bonita, inteligente, cheia de filhos e de netos. É tradutora e trabalha feito louca. E ainda tem tempo de ir à India enrolada num pano vermelho, à Mata Atlântica a pé, e a Londres, de um dia para o outro, tentar comprar um barco atracado no Tâmisa.
É claro que, por deformação profissional, falo muito em comida e ela deve me achar um expoente no assunto. No outro dia engrenamos uma conversa com o terna "Casa", para treinar a linguagem de aluguéis, juros, hipotecas, instalações elétricas, reformas, tábuas de piso e telhas.
"Você não se cansa, não se preocupa?"
A aula já chegava ao fim e eu em pé, de bolsa, sentei de novo. "Cansada, eu? Não, nem um pouco. Morta! Há anos que morro um pouco todo dia com a comida lá de casa."
Vi que os olhos azuis de Claire se iluminaram, quase sem acreditar que eu dizia a verdade. "Jura?"
Juro! Verdade pura. Acho um absurdo este processo infindável. Café da manhã, pão fresco, manteiga, laranjada, leite. Pôr e tirar a mesa. Começar a preparar o almoço. Um come só frango, outro só carne, outro nem carne nem frango, outro faz regime. As panelas sujas, as vasilhas, os pratos. E a sobremesa, e o cafezinho. O cafezinho é um verdadeiro martírio.
Um lanche às quatro. Se tiver empregada boa tem que ter um bolo e umas quitandas. E já lá vem o jantar... carne assada, purê, brócolis...
Aí, Claire e eu já estávamos entendidas. Isso não é serviço para ninguém. Não tem a mínima lógica. Não é justo deixar uma empregada presa a vida inteira, fritando bolinhos, como tia Anastácia para o Minotauro.
Não é justo deixar qualquer mulher que pode crescer em sabedoria, lazer e prazer, nesta tarefa de Sísifo. Credo! Tem aquelas que adoram servir maridos e filhos, família, mas quase sempre o resultado é passar as tensões para os que comem, como em "Como Água para Chocolate".
Mas o que é que mata nesta história de comida do dia-a-dia? É um lugar comum, um óbvio ululante, é o próprio dia-a-dia. Não se pode pular um só. E a previsibilidade? Chegar em casa para o arroz, o feijão, salada de alface e tomate, bife... Aí você se rebela —isso não é possível!— e contrata uma cozinheira de forno e fogão. Chega em casa é salada russa, estrogonofe, frango com catupiry, lasanha comprada pronta com carne moída e molho de tomate em lata, pudim de maisena com ameixa preta.. Não é morrer um pouco cada dia?
É a mesmice, a mediocridade. Mudam todos os costumes, mata-se por dá cá aquela palha, a ética balança e cai, a moral muda de cara, e o feijão com arroz, ali, firme. Deveria haver um pena capital por se tratar a comida que Deus nos deu sempre do mesmo jeito, sem graça, sem "élan", sempre ruim, sem um lampejo de glória. Por que não se fazer uma revolução? Ter idéias novas?
A pobre Claire conseguiu uma brecha para dar sua opinião.
"Sabe, eu fico imaginando uma casa do terceiro milênio. Como serão resolvidas as coisas? Sempre faço uma pesquisa prévia e séria quando quero resolver um assunto importante. E me pus a pensar...
Quem foi a pessoa mais habilidosa, mais inventiva do Brasil? Logo cheguei à conclusão que foi Santos Dumont. Ele voou, simplesmente voou! Pois fui à casa dele em Petrópolis. Tudo tão bem bolado, nos mínimos detalhes.
Chama-se A Encantada, e era isso mesmo que eu queria. Uma casa encantada, com uma cozinha encantada. Engraçado que a casa tem paredes internas, é como estar dentro de um avião. Três andares. No primeiro, um quarto e uma varanda, no segundo uma sala de visitas e de jantar e no terceiro um banheiro e um quarto de dormir. E a cozinha..."
Quase perdi a respiração querendo adivinhar.
"Nina, a cozinha... não tinha. Santos Dumont não tinha cozinha. 'How about restaurants', esta coisa maravilhosa", suspirou Claire.
Meu Deus, Santos Dumont não tinha cozinha, que tal restaurantes, alegria, bom humor, paz, huum, Santos Dumont desinventou a cozinha, será?

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