São Paulo, domingo, 19 de março de 1995
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O espelho da transição

FRANCISCO DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Professor na Universidade de Chicago (a dos "Chicago Boy's"), Adam Przeworski é um mega-star da ciência política. É da seleta tribo dos "marxistas analíticos", que quer salvar o Marx cientista do demagogo, ultrapassado, justo retirando-lhe o que o distingue de outras tradições científicas. (Uma crítica radical ao "individualismo metodológico" é empreendida por Burawoy em "Making Nonsense of Marx. O Marxismo Revisto pelo Individualismo Metodológico", Revista Brasileira de Ciências Sociais, ANPOCS - Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, nº 15, 1991).
Seus textos circulam amplamente no Brasil. Capitalismo e Social-Democracia (Cia. das Letras) tem lugar proeminente entre as obras que teorizam aquelas relações transformadoras, sugerindo, que não há passagem da social-democracia para o socialismo, posto que os trabalhadores, teoricamente os mais interessados, não obteriam vantagens materiais; os capitalistas, "of course".
Democracia e Mercado no Leste Europeu e na América Latina, entretanto, não pode gozar da mesma acolhida. No capítulo "A Democracia", Przeworski examina os usos da teoria dos jogos no tratamento das questões políticas mas, mesmo com sua reconhecida competência, não vai longe. A não ser para demonstrar a utilidade marginal —já estou falando como um Chicago Boy— dessa ferramenta.
Contudo, por mais sofisticado que se arme o jogo da teoria dos jogos, ficará muito aquém do real. Os resultados são tantas situações diferentes, produtos de múltiplas combinações que, na prática, tais modelos apenas reafirmam o óbvio: cada situação é única. O que o velho Marx já chamava de análise concreta de situações concretas. Nada se ganha em alcance teórico; no máximo, a operacionalidade da análise, que ainda assim permanece rasa.
Teoria dos jogos
Não é sem consequência para o objeto de estudo do autor a adoção da teoria dos jogos: a história é devastada pela metodologia. Przeworski estuda as transições, quase simultâneas, na América Latina e no Leste Europeu, de regimes políticos autoritários ou ditatoriais (esta última adjetivação não é do polonês, dada sua finesse) rumo à democracia e das economias centralizadas para as de mercado.
Os equívocos começam pelas analogias. Mesmo quando mais se parecessem com uma economia centralizada, nenhuma das da América Latina jamais chegou perto das do Leste Europeu, outrora chamadas socialistas. A estas, justamente, tenham sido ou não socialistas, faltava-lhes a propriedade capitalista. Esta "sutil" diferença é decisiva, para o bem ou para o mal. E a isto o instrumental de Przeworski não dá relevo, nem o devido estatuto.
Robert Kurz, por exemplo, encontra aí a razão da derrocada do sistema socialista: a concorrência como repartição da mais-valia ou a ausência de um sistema de preços nos termos capitalistas, cujo fundamento é a propriedade.
Não vale o argumento de que as empresas estatais faziam as vezes, nas economias latino-americanas, da propriedade não-capitalista nos países do Leste Europeu.
Esse argumento esquece que quase todos os países capitalistas desenvolvidos, com a insólita exceção dos EUA, têm ou tiveram um setor produtivo estatal de enorme gravitação na economia, e nem por isso podem ser chamados de economias centralizadas. A privatização das estatais britânicas sob Thatcher seria também o caso de passagem de economia centralizada para a de mercado?
A formação dos preços nas economias latino-americanas, dominadas por oligopólios privados e monopólios estatais em estreita combinação, em nada se parece com uma economia socialista ou centralizada. Os "Chicago Boy's" poderiam ajudar Przeworski a desfazer esse nó, mas nem isso é preciso: até por ser polonês, ele conhece bastante o assunto, e por isso a omissão dessa diferença central não é ingênua, permitindo-lhe carregar no formalismo maniqueísta sem atentar para as diferenças substantivas.
O que ocorreu com as mais importantes estatais latino-americanas foi sua utilização pelos governos para fins de política econômica: por exemplo, para tomar dinheiro externo e fechar contas do balanço de pagamentos ou para refrear a inflação, congelando suas tarifas. Procedimentos, aliás, adotados por qualquer governo capitalista.
Nas economias "centralizadas" da América Latina de Przeworski existem setores privados, maiores que os estatais, o que não existia no Leste Europeu. Tanto os grandes grupos nacionais quanto os grupos estrangeiros, na América Latina, formam seus preços e seus capitais como qualquer empresa nos países desenvolvidos, de onde, aliás, provêm os capitais estrangeiros. É verossímel o Estado brasileiro administrando os preços da General Motors?
Grave falha nas análises de Przeworski sobre as economias latino-americanas é o desconhecimento total da presença e do peso das empresas estrangeiras nessas economias, e do fato ainda mais importante de que, à diferença das economias do Leste Europeu, as economias "centralizadas" da América Latina jamais se afastaram do sistema capitalista.
Aliás, a hipótese mais provável e melhor fundada é a de que a "centralização" a que se refere Przeworski (controles de preços e de câmbio, estatais, subsídios e incentivos à acumulação) foi uma condição sine qua para o funcionamento do mercado, ou seja, para a forçada adaptação das nossas economias à internacionalização produtiva e, agora, à globalização financeira.
Isto bastaria para jogar para o ar as hipóteses e conclusões de Przeworski sobre a transição para "economias de mercado", o que não ocorre, certamente, por que não é de bom tom invectivar um titular, logo de Chicago...
No capitalismo, o Estado formata, usando um termo da informática, as condições do mercado: é o que Marx chamava as condições gerais da produção, sem as quais não há mercado capitalista. É o que ocorre hoje com as pesadas intervenções dos Bancos Centrais para sustentar o dólar; vale dizer, sustentar (formatar) a concorrência entre os capitais.
Esta é a espinha dorsal do capitalismo contemporâneo, a imbricação do Estado com a economia privada redefinindo os contornos do público e do privado, tema que Przeworski havia abordado em seu ótimo Capitalismo e Social-Democracia e que, parece, esqueceu.
Nas análises das transições do autoritarismo para a democracia, o titular de Chicago não se sai nada melhor. Sua advertência quanto à não-equivalência entre as transições econômicas e política não o salva de sugerir todo o tempo analogias entre ex-URSS, Polônia, República Tcheca, Eslováquia, ex-Alemanha Oriental, Hungria, Bulgária, Romênia e Brasil, Argentina, México, Chile, e Bolívia. Esse "pendant" contamina todas as análises. Aqui o formalismo cobra todos os seus direitos.
Embora formalmente o Leste Europeu e aqueles países latino-americanos estivessem saindo de regimes autoritários e/ou descaradamente ditatoriais —salvo o México que segue atolado—, faz diferença que no leste os regimes se intitulassem socialistas, enquanto aqui são capitalistas. Um regime com propriedade privada do capital estrutura-se diferentemente em termos das classes sociais, de suas relações e destas com o Estado.
Analogias formais
É certo que a política não se reduz a um espelho das estruturas materiais de produção e propriedade, mas a forte relação entre esses campos não torna indiferente, para a política, as formas da propriedade, assim como para esta tampouco é indiferente se se trata de ditadura ou democracia.
Mas a experiência tem demonstrado que no capitalismo o regime da propriedade privada é muito mais estável em relação às mudanças do regime político, com consequências importantes para a transição. As relações das estruturas sociais e produtivas dos países do Leste Europeu com a política não poderiam, portanto, assemelharem-se às da América Latina.
Por isso, analogias puramente formais dizem pouco a respeito dos processos substantivos. As transições políticas na América Latina não ameaçaram, dadas as estruturas materiais, de propriedade e de classe de suas sociedades, os limites do sistema econômico.
Até onde sabemos, não se passou o mesmo nos países do Leste Europeu. Salvo a Polônia, cuja transição já havia começado no interior mesmo das estruturas do regime comunista, nos demais casos se dá a passagem do poder para opositores dos regimes enquanto totalidades.
Já nos países da América Latina que Przeworski utiliza em suas análises comparativas, a oposição contestava, no máximo, a forma do regime político, mas não a natureza do sistema econômico nem suas estruturas sociais e de poder. Isto faz uma enorme diferença entre os dois casos, atenuando ou até anulando as convergências formais encontradas por Przeworski.
No limite, as questões em torno das transições mudam radicalmente quando se leva em conta tais diferenças. A comparação se torna quase inútil. Como disse Guimarães Rosa, nenhum, nenhuns.

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