São Paulo, domingo, 19 de março de 1995
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Razão e fé travam combate

MARTIN WALKER
DO "THE NEW YORK TIMES BOOK REVIEW"

Na madrugada do dia em que iria comparecer diante do Comitê de Justiça do Senado para responder às acusações de molestamento sexual feitas por Anita Hill, Clarence Thomas sentou-se diante de um bloco de anotações em branco e disse a sua mulher que estava se abrindo para o Espírito Santo.
Depois, o homem indicado para substituir Thurgood Marshall na Suprema Corte redigiu a declaração em que afirmava que a perseguição que estava sofrendo não era americana, e sim kafkiana.
Thomas e sua mulher foram até o escritório de seu patrono, o senador republicano John C. Danforth, —cujo livro, "Resurrection", dá todos esses detalhes.
Os casais Danforth e Thomas entraram no banheiro privativo do senador e deram-se as mãos. Danforth ligou um gravador e deu início a um ritual cuja descrição dificilmente será lida sem risos por alguém não tão devoto como eles.
A fita gravada continha hinos religiosos do coral do Tabernáculo Mórmon. O senador pôs as mãos nos ombros de Thomas e disse: "Vá em nome de Cristo, confiando no poder do Espírito Santo". Espiritualmente fortalecido, Thomas entrou na sala do comitê.
Quem achou que o espetáculo assistido em outubro de 1991 dizia respeito às confusas relações entre homens e mulheres entendeu tudo errado. Para Clarence Thomas, era a guerra entre o Bem e o Mal.
Em outro livro, Jane Mayer e Jill Abramson dão uma versão muito mais convencional dessa disputa, detalhando o papel político da direita religiosa na confirmação de Thomas como juiz.
A leitura dos dois relatos nos faz ver a que ponto os EUA estão divididos entre os universos mutuamente incompreendidos do secular e do religioso.
" Strange Justice" é uma obra racional, um relato coerente da nomeação e confirmação de Thomas que segue a lógica, pesa as evidências e mostra o juiz como um homem descrito como tendo um pendor pela pornografia e por usar palavrões e intimidar funcionárias.
Na visão laica, o caso era de política sexual —como o julgamento de William Kennedy Smith por acusação de estupro, o caso John Bobbitt ou as acusações de Mia Farrow contra Woody Allen.
Por que esse confronto fascinou tanto os norte-americanos? Talvez Clarence Thomas tenha compreendido a causa quando falou dos " negros metidos a besta que ousam pensar por si próprios".
Todo o mal-estar do país com seus problemas de raça, sexo e classe social se juntou naquele dia no Senado. E o prêmio era um cargo vitalício na Suprema Corte.
A lição é que o universo da fé é hoje capaz de comandar tempo e deferência política num sistema constitucional que supúnhamos ser produto e domínio da mente racional. Nem todos cantamos hinos no banheiro, mas estamos aprendendo a reconhecer o poder e a determinação daqueles que o fazem.

" Resurrection — The Confirmation of Clarence Thomas" (Ressurreição — A Confirmação de Clarence Thomas), de John C. Danforth. Nova York, Viking, 225 págs., US$ 19,95.
" Strange Justice — The Selling of Clarence Thomas" (Justiça Estranha — A Venda de Clarence Thomas), de Jane Mayer e Jill Abramson. Boston, Houghton Mifflin Company, 406 págs., US$ 24,95.

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