São Paulo, terça-feira, 21 de março de 1995
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Sharon Stone abandona instinto selvagem

JOHN CLARK
DA "PREMIERE"

Sharon Stone é a única pessoa que consegue achar algo de provocante na imundície de Redemption —cidade fictícia construída pela produção do filme "The Quick and the Dead" a 50 km a leste de Tucson (Arizona, EUA), evocando o Oeste americano por volta de 1870.
"Você vai tomar banho hoje?", pergunta Sharon. "Ninguém toma banho por aqui", responde alguém da equipe técnica. Com exceção de Sharon, o elenco e a equipe do filme vivem fazendo piadas sobre a sujeira de Redemption.
A cidade tem alguns dos personagens mais mal-encarados desde a época dos "spaghetti westerns" de Sergio Leone, cujo modelo este filme segue, sob alguns aspectos. Sharon faz o papel da estranha misteriosa, uma personagem à Clint Eastwood.
Os habitantes da cidade —pistoleiros e os infelizes que vendem a eles mulheres, munição e serviços funerários— a tratam como pária ou prostituta. E, perto do fim do filme, ela participa de um concurso para ver quem saca a arma mais rapidamente. Primeiro prêmio: US$ 123 mil. Segundo, terceiro, quarto etc.: um caixão de pinho.
O responsável por infundir vida a esses personagens grotescos é Sam Raimi, 35 anos e voz macia, mestre de filmes de comédia-horror ("Uma Noite Alucinante 1, 2 e 3" e "Darkman - Vingança sem Rosto").
Desta vez ele dispõe não apenas de Sharon Stone, mas de um orçamento de US$ 30 milhões, o suficiente para pagar Gene Hackman, Russell Crowe, Leonardo DiCaprio, Lance Henriksen, Pat Hingle e toda uma tropa de pessoal de segundo escalão, mas de primeira categoria.
Em "The Quick and the Dead", ainda sem título no Brasil, onde deve estrear em maio, Sharon Stone veste calças apertadíssimas de couro, mas seu lado de "sex symbol" fica definitivamente em segundo plano. E é assim que ela quer que fique. Sharon está tentando distanciar-se um pouco da imagem que criou para "Instinto Selvagem" —sem, é claro, sacrificar seu "sex appeal".
Com Sam Raimi ela tem o tipo de diretor que não está nem um pouco interessado em iluminá-la descruzando as pernas. "Sharon se permitiu ficar com ares de vaqueira rude e mal-vestida", diz Bruce Campbell, amigo de longa data de Raimi. "Ela não adotou o look padrão do 'Bonanza', com aquelas sobrancelhas pinçadas —e merece ser elogiada por isso."
Os veteranos como Pat Hingle ("John Huston deve estar se virando no túmulo!") e Gene Hackman toleram a abordagem de Sam Raimi, mas não a aprovam totalmente. Hackman faz o papel de Herod, que manda em todos em Redemption e extorque dinheiro dos habitantes da cidade —em outras palavras, o bandido.
Gene Hackman não se opõe a caracterizações tão simplistas —mas gostaria que fosse ele quem as traçasse. Ele gosta de fazer experiências, o que exige tomadas de mestre e muito filme. A técnica de Raimi não tem lugar para isso.
"Raimi corta o filme na própria câmera, até certo ponto", diz Hackman, sentado numa cadeira de diretor na poeirenta rua principal do set.
"Isso quer dizer que muitas vezes ele não deixa uma cena genial chegar até seu fim natural. Acho que é muito bom ter material suficiente para se poder cortar. Porque nada sai do jeito que se planejou, nunca. Pode haver seis atores com possivelmente pelo menos duas boas idéias que é preciso deixar acontecer. Se você não deixa a câmera rodar tempo suficiente para captar tudo aquilo, você talvez se prejudique."
Hackman diz "talvez" várias vezes, porque é exteriormente tímido e porque não tem certeza absoluta do que está falando. Sharon Stone não dúvidas desse tipo, mas ela também está fazendo sacrifícios. Assim como Hackmann está abrindo mão de seu principal trunfo (controle sobre sua performance), ela está abrindo mão do seu (fascínio sexual).
Eles não deixam de ser estrelas, mas nesse filme são estrelas subordinadas a Raimi, cuja reputação define o termo "herói cult" —um diretor com espantoso talento cinematográfico, a quem nenhum grande estúdio tinha dado uma chance adequada, até agora.
"Não interessa os atores que ele tem", fala Campbell. "Quando as pessoas saírem do cinema, vão dizer: 'É um filme de Sam Raimi'. Sam sempre foi e sempre será a grande estrela de seus filmes."
Esta não é a primeira vez que Raimi tenta trabalhar com um grande estúdio. Ele já havia feito um filme para a Universal, chamado "Darkman", no qual Liam Neeson é um cientista que explode num atentado provocado por uma quadrilha. Ele volta para se vingar dos criminosos, coberto com pele artificial que produziu em seu laboratório. Mesmo com essa idéia mais ou menos esdrúxula Raimi levou o trabalho do cineasta a extremos.
"Ele tinha idéias na cabeça que eram legais, cinematograficamente falando, mas a gente vivia brigando sobre elas", conta Ivan, seu irmão e frequente co-roteirista. "Por exemplo, ele queria que o Darkman pulverizasse Bactine sobre suas queimaduras para ajudá-las a cicatrizar. Eu dizia: 'Isso não é tecnologia médica de ponta'."
A beleza do projeto "The Quick and the Dead" —roteiro de Simon Moore— é que o poder da estrela Sharon Stone deu a Raimi a chance de fazer um filme de Sam Raimi relativamente não-adulterado. Pelo menos é essa a idéia.
Sharon fez parte do pacote desde o início. Raimi foi sua primeira e única opção de diretor. "Se ele não o fizesse", diz Sharon, na voz rouca que é sua marca registrada, "eu não toparia fazer o filme. Acho que o gênero 'western' atingiu seu auge com 'Os Imperdoáveis', e eu não estava interessada em fazer outro western em estilo clássico".
Ela também insistiu em ter —e conseguiu— Russell Crowe como seu parceiro amoroso no filme, embora o estúdio fizesse objeções e o próprio Crowe tivesse outros trabalhos, que levaram ao adiamento da produção, e o próprio Sam Raimi preferisse Liam Neeson, que também se mostrara interessado. Ela também conseguiu Leonardo DiCaprio para o papel de um jovem pistoleiro —à custa de ajudar Raimi a pagar seu cachê.
DiCaprio retribuiu os esforços de Sharon, gabando-se de ter sido citado dizendo que ela é "melhor do que um saco de caca de nariz". Quando Sharon ouviu a história, agarrou-o no bar da cidade. "O que você falou mesmo?", perguntou brava, em tom de irmã mais velha.
DiCaprio, como adolescente espertinho: "Falei que você não é um saco de caca".
Sharon Stone, puxando seu cabelo: "Mas você sim, é um saco de caca". Mas ela admite depois: "Considero isso, vindo de um cara de 19 anos, um grande elogio".
Segundo Campbell, a equipe técnica sente a mesma coisa em relação a Sam Raimi, apesar das exigências que ele costuma fazer. Raimi usa gravata todos os dias, à Hitchcock, como gesto de respeito. Ele chama todo mundo de "senhor" ou "amigo", ao mesmo tempo irônico e afetuoso.
Mas por baixo dessa cortesia existe algo ao mesmo tempo subversivo e abusivo. Raimi gosta de infligir sofrimento físico aos atores para conseguir um desempenho máximo deles.
No primeiro dia de filmagens, segundo Campbell, "Sam tinha um plano muito específico na cabeça e queria que Gene fizesse seis coisas muito diferentes. Gene olhou para ele e disse: 'Não vou fazer nada disso'. Então Sam falou: 'Vou explicar porque eu queria que você fizesse'. Gene acabou fazendo tudo que Sam queria".
O grande preferido de Raimi é sempre a câmera. Um dos desafios que enfrenta neste filme é que há pelo menos meia dúzia de tiroteios, e ele precisa fazer com que cada um pareça diferente dos outros.
Novos projetos
Com o final das filmagens de "The Quick and the Dead", Raimi pode ir direto a seus próximos projetos —a adaptação de "A Metarmofose", de Kafka, e "Frosty the Snowman"— ou, quem sabe, passar algum tempo ocupado com seu hobby, a agricultura amadora.
Mas mesmo essa atividade se funde com o cinema. "Desde que conheço Sam, ele sempre teve pilhas de composto (material orgânico em decomposição) nos fundos de sua casa", conta Campbell. "Só que Sam pegava filme Super-8, moía e colocava no composto. Com esse composto adubava seus legumes, que depois comia. Em outras palavras, ele é o único cineasta que come filme."

Tradução de Clara Allain

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