São Paulo, terça-feira, 21 de março de 1995
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A "Lei Piranha" ou o fim do casamento à moda antiga

SAULO RAMOS

Meu amigo Antônio Carlos Magalhães desancou o Poder Judiciário fundado em casos isolados, que generalizou. É o jeito dele. Inteligente como poucos, exímio debatedor e baiano, tem qualidades que o tornam imbatível em determinados tipos de briga. E como gosta de briga!
Não pretendo analisar seu discurso, cuja íntegra desconheço, mas aproveito a chance para devolver algumas porradas ao Legislativo Federal, que enxovalhou o país com a lei nº 8.971, de 29 de dezembro de 1994.
Além de pessimamente redigida, a tal lei, sob pretexto de regular os direitos, das concubinas e dos concubinos, a alimentos, estendeu-os à sucessão em tal termos que hoje e neste nosso país é melhor ser amigado do que casado.
Nada, senhores e senhoras, do sagrado e sério instituto do casamento restou de pé. O concubinato, a amigação, o juntamento tem, agora, tutela jurídica mais ampla do que o velho matrimônio, protegido pelo direito constitucional e pelo ancestral direito civil de Clóvis Beviláqua.
A coisa começa devagar, no artigo primeiro, em que é instituído o direito à pensão alimentícia em favor da "companheira comprovada de um homem solteiro (ainda bem que não a de dois), separado judicialmente, divorciado ou viúvo", desde que com que ele viva há mais de cinco anos ou, simplesmente, que tenha tido um filho dele, para o que são suficientes nove meses.
A redação desse artigo é tormentosa porque não há quem possa entender um homem solteiro que seja separado judicialmente, divorciado ou viúvo. Nosso legislador, porém, inventou a teratológica figura, que é tudo ao mesmo tempo: basta ser homem e ter a companheira ou a aventura.
No parágrafo único dessa coisa, vem outra, que transcrevo integralmente: "Igual direito e nas mesmas condições é reconhecido ao companheiro da mulher solteira, separada judicialmente, divorciada ou viúva". Igual problema gramatical resulta desse inciso, pois me parece ser muito difícil a mulher solteira ser separada judicialmente, divorciada ou viúva.
A lei barregã, como diria o genial baiano Rui Barbosa, preocupou-se, portanto, com o direito dos cafetões, dos rufiões, dos gigolôs. E empatou os direitos. Se a companheira pode exigir pensão do homem, o companheiro também pode exigi-la da mulher, nas mesmas condições, diz a lei expressamente.
E agora? Quem ingressar em juízo pleiteando a pensão corre o risco de sofrer reconvenção para pagar a mesma pensão pleiteada pelo outro(a). Sim, eu sei, os juízes terão prudência para avaliar as situações de fato em que os direitos sejam conflitantes e excludentes entre si. Mas terão saco para decidir, com calma, a avalanche de besteiras que a lei provocará?
Em seguida, o novo diploma legal (diploma faz lembrar canudo) estabelece que o companheiro, ou companheira, que sobreviver ao outro, ou à outra, enquanto não constituir nova união, terá direito ao usufruto da quarta parte dos bens do "de cujos" (com "o", está escrito), se houver decujinhos (filhos) deste ou comuns.
E vem mais: usufruto da metade dos bens (anotem: metade!), se não houver filhos e apenas ascendentes (pais, avós). Finalmente, na falta de descendente e ascendentes, está assim escrito: "o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito à totalidade da herança".
Ora, pelo direito civil normal, a mulher casada com absoluta separação de bens tem, em todas as hipóteses, direito ao usufruto de um quarto (25%) do patrimônio deixado pelo marido falecido. Logo, a concubina, ou o concubino passa a ter vantagem sobre a esposa e o marido, pois, não havendo filhos, terá usufruto da metade. Se casado ou casada, o falecido, ou falecida, sem descendentes e ascendentes, tem como herdeiros ou colaterais (irmãos, sobrinhos). Se concubinado, ou concubinada, mesmo tendo irmãos e sobrinhos, o herdeiro universal será, pela nova lei, a companheira ou o companheiro, conforme o caso, isto é, conforme o morto, ou a morta. Estamos conversados, essa história de família já era.
Vejam o primor da redação do art. 3º: "Quando os bens deixados pelo(a) autor(a) da herança resultarem de atividade em que haja colaboração do(a) companheiro(a), terá o sobrevivente o direito à metade dos bens". Aí esqueceram o "a" antes de sobrevivente, pecado mortal contra as mulheres.
É, igualmente, a primeira vez que aparece no direito positivo do mundo essa canhestra redação de palavras masculinas seguidas de um (a) entre parênteses para indicar o feminino.
Na realidade brasileira, a defesa das mulheres não-casadas, que vivem, ou viveram, maritalmente em estado de concubinato —em advoguês chamamos de "more uxório"— existe uma linda conquista pretoriana (jurisprudência) assegurando-lhes direitos patrimoniais quando de qualquer forma tenham contribuído para a aquisição dos bens comuns, a sociedade de fato entre pessoas não-casadas. A luta no Judiciário, inspirada em eloquentes teses da doutrina (lembrem-se de Edgard Bittencourt), acabou vitoriosa na Súmula 380, do Supremo Tribunal Federal.
Como advogado, também eu contribuí defendendo dezenas de mulheres titulares desse legítimo direito, mulheres que, depois de uma vida toda dedicada ao companheiro, ficavam sem nada, pois, em geral, os machões (nem todos) adquirem os bens em seus próprios nomes e deixam a companheira para o vamos ver como fica.
Mas o reconhecimento desse direito incontestável não poderia resultar na redução hierárquica dos direitos das pessoas casadas, nem interferir acintosamente no direito de sucessão, retirando da família, legalmente constituída, a preferência dos colaterais à herança, e dando ao não-casado, homem ou mulher, usufruto maior do que aquele assegurado aos casados na hipótese de morte do cônjuge.
Isto vai, em determinadas circunstâncias, provocar divórcios, posto que, para algumas situações, melhor será terminar o casamento e partir para a amigação.
Muita gente já disse que, às vezes, o casamento é mais negócio do que amor. Pois, agora, negócio é juntar os trapos, porque depois que se valorizam e valem algum dinheirinho, a lei passa a dar preferência e privilégio aos juntados em detrimento das famílias constituídas pelo casamento.
A Constituição, que reconhece a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar (art. 226, parágrafo 3º), declara solenemente "...devendo a lei facilitar sua conversão em casamento".
E o que fez o Legislativo? Uma ova para a Constituição e bananas para as instituições jurídicas protetoras da família, fato gravíssimo que elimina séculos de conquistas e de civilização.
Podem esperar, essa leizinha imoral logo logo será invocada até pelos companheiros(as) do mesmo sexo, pois será repulsiva a discriminação, já que se esculhambou geral, além da interpretação gramatical permitir tal entendimento, graças ao "a", grafado depois dos "o", consagrando a possibilidade de união entre companheiro e companheiro, ou entre companheira e companheira, posto que ninguém é obrigado a separar o que está ou não entre parênteses, já que se acabou com os parentes e a redação do monstrengo permite essa leitura, que nós, complicadamente, chamamos de hermenêutica.
O Poder Judiciário, dentre suas reformas necessárias, que trate de programar também a extinção das Varas de Família e, em seu lugar, instalar as Varas Piranhas(os); e Antônio Carlos Magalhães, no próximo discurso, que reserve pedras, não digo as primeiras, mas algumas, para atirar contra o lado de dentro do Legislativo Federal, posto que, para fazer lei como essa, é melhor que se suicide, o Congresso, não ACM, velho amigo de tanto tempo, que certamente haverá de propor um projeto revogando todas essas vergonhas.
São vergonhas degradantes, profundamente lesivas à tutela jurídica da família, mais graves de que uma simples falta de fôlego do ministro Néri da Silveira ao deixar um processo quatro anos sem julgar, ou do ministro Sepúlveda Pertence por haver engavetado, durante mais de três anos, a ação, proposta pelo PT, contra a telefonia privada, e interrompendo um julgamento que seu partido político estava perdendo por quatro votos a zero.
A falta de um ou outro juiz, ainda que censurável, não pode pesar contra todo o Judiciário. Mas uma lei como esta, horizontal e barregã, consagrando os cafetões, os amancebados e os barregueiros, voltada contra as instituições do direito de família, compromete irremediavelmente o Legislativo, que somente se salvará na rápida revogação.
E agora, nesta semana, acaba de sair nova lei (ainda não tem número), que admite a amigação através de contrato em cartório e regula novos direitos dos "conviventes", de forma diversa da outra. Temos, pois, estatutos jurídicos para a cafetinagem, para os conviventes e, por último, desbotado e inexpressivo, o Código Civil regulando o casamento à moda antiga.

JOSÉ SAULO PEREIRA RAMOS, 62, é advogado em São Paulo. Foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney).

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