São Paulo, quarta-feira, 22 de março de 1995
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Livro expõe saga de Henrique Oswald

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

O compositor carioca Henrique Oswald (1852-1931) é a prova de que o pensamento crítico pode comprometer a produção artística de uma vida.
Oswald (pronuncia-se "ôsvald") fez papel de espantalho estético dos modernistas. Sua obra foi fixada como antinacionalista pelo crítico Mário de Andrade e seguidores. Como resultado, conheceu o esquecimento de quase um século.
Ela volta a ser lembrada no início de maio com a publicação do livro "'Henrique Oswald, Músico de uma Saga Romântica" (editora Giordano/Edusp, 220 págs.), do pianista e musicólogo paulistano José Eduardo Martins, 56.
O ensaio mescla biografia, história cultural e análise musicológica. Resulta de 15 anos de pesquisa e uma tese de doutoramento, defendida no departamento de história da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP em 1988.
O texto faz Oswald ressurgir como um dos principais compositores do final do Romantismo, estilisticamente próximo dos franceses Gabriel Fauré (1845-1924) e Camille Saint-Sa‰ns (1835-1921).
Segundo sugere Martins, Oswald merece formar uma trindade da música nacional ao lado de Heitor Villa-Lobos (1887-1959) e Carlos Gomes (1836-1896), apesar de ter sido o mais europeu dos três.
O livro também abre uma nova perspectiva sobre a vida musical romântica no Brasil. É o retrato de um enredo familiar.
Oswald foi amado e narrado por pais, mulher e filhos. Mas angariou a antipatia do meio musical local por ter vivido três décadas na Europa. Além disso, odiava a miséria cultural brasileira e gostava de ser italianamente chamado de Enrico (leia texto ao lado).
O músico escreveu cerca de 250 partituras de todos os gêneros durante meio século de trabalho. Nas últimas décadas quase todas foram executadas, por ratos e traças.
Martins, um especialista no compositor impressionista Claude Debussy, conta que descobriu Oswald pelo tato: "Ao tocar algumas peças dele na década de 70, percebi haver ali mais do que um mestre menor, conhecido apenas pela obra 'Il Neige', que ganhou o concurso do jornal 'Le Figaro' em Paris em 1896."
Decidiu se dedicar ao estudo da produção oswaldiana em 1978, quando teve acesso aos documentos da família no Rio. Estes lhe foram mostrados pela neta do compositor, Maria Isabel.
"A documentação era impressionante", lembra. "Diários, recortes, partituras, tudo foi organizado com extrema ordem por quatro gerações de parentes."
Apaixonou-se pelo assunto. Durante cinco anos, fez várias viagens de ônibus ao Rio para visitar a filha de Oswald, a Biblioteca Nacional e o Arquivo Nacional.
O trabalho rendeu frutos imediatos. Gravou em 1983, para Funarte, um álbum duplo com as obras para violoncelo e piano de Oswald, com o violoncelista Antonio del Claro. O álbum está fora de catálogo, como tudo no país.
"Encontrei em Oswald um estilo definido", analisa. "Pode-se falar de cadências e encadeamentos harmônicos oswaldianos. A melodia generosa e longa lembra seus contemporâneos europeus, Franck e Fauré."
Mas o que chamou mais atenção do pianista foi a questão estética incrustada nas obras. Perguntou-se por que esse compositor teria sido vítima de um anátema tão pesado dos modernistas.
Atribui o fato ao preconceito de um movimento emergente, a Semana de Arte Moderna, anti-romântico e nacionalista: "Mário de Andrade jogou baixo porque não se prendeu ao valor intrínseco da obra, mas a fatores extramusicais, ideológicos. Condenava-o, por exemplo, por não ter usado elementos rítmicos nacionais."
Como não tinha interlocutores, argumenta o musicólogo, Mário acabou firmando sua opinião através das gerações. Sua posição foi repetida "ad nauseam" por discípulos.
É o caso do crítico Renato Almeida, que chamou Oswald de "despaisado". "Será difícil situá-lo no quadro da nossa música, porque era inteiramente despaisado e a mim próprio afirmou que não via lugar para si na história da música brasileira", decretou Almeida na sua "História da Música Brasileira", de 1942.
Oswald já era um ancião quando eclodiu o modernismo brasileiro. Sempre discreto, não entrou em polêmica. Preferiu se devotar à música sacra.
Para Martins, o livro ajuda a derrubar o tabu modernista e limpar o terreno para a execução e recepção de uma obra importante.
O texto demonstra que o "despaisado" manteve na vida privada uma postura crítica contra a burocracia e a vida cultural brasileiras. A condenação do Brasil se reflete na obra, inteiramente européia e antinacionalista. Isso não quer dizer que não amasse a terra natal. Quis morrer nela e fazer parte do patrimônio universal.
Martins gostaria de ver a obra do compositor gravada e ouvida pelo grande público, já que se trata de uma música acessível: "Paralelamente, é preciso estabelecer a obra completa".
Em novembro de 1994, a filha de Oswald doou o arquivo da família ao departamento de música da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP, onde Martins é professor.
A ECA está montando uma equipe para catalogar e publicar a obra de Oswald. "O trabalho deve levar 30 anos", afirma Martins. "Mas vale a pena."
O pesquisador arrisca afirmar que, se Oswald tivesse nascido na França, seria hoje executado e apreciado como Fauré.
Para provar o que diz, fará um teste com o público europeu em 20 de novembro próximo. Está organizando um concerto de duas horas e meia com obras camerísticas e orquestrais de Oswald, a ser apresentado no Conservatório Real de Guent, na Bélgica.
Graças à inércia da crítica, a obra enorme desse "despaisado" continua vagando, enquanto espera a atenção dos intérpretes brasileiros.

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