São Paulo, quarta-feira, 22 de março de 1995
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Coleção da Sony esquece memória musical

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

A Sony Music distribuiu à imprensa alguns CDs e um "press release" que começa assim:
"Lembra aquele LP 'Retratos', com Jacob e seu bandolim e Radamés Gnatalli e sua orquestra, que você adorava ouvir na antiga vitrola? Pois não precisa chorar, pois ele e mais outros grandes lançamentos antológicos da música brasileira estão chegando ao mercado, em CDs, através da coleção de preço médio."
Eu me lembro do LP do Jacob com Radamés. Também adorava ouvi-lo na minha vitrola. Mas não andava chorando a sua ausência, já que ele foi reeditado pela Revivendo, no formato original. Guardei meu pranto para a sua edição em CD. Ela é, mesmo, de chorar.
Remasterizar só, não basta. Se um disco é histórico, há que se contar um pouco de sua história. No mínimo indicar o ano em que foi lançado. Nem isto a Sony Music se deu ao trabalho de fazer com o inesquecível encontro do bandolim do Jacob com o piano e as cordas do Radamés. Como os demais CDs da coleção "Mitos & Músicas", "Retratos" contém apenas a relação das músicas. Custava ter posto, pelo menos, um texto assim? Dois pontos.
Gravado em 1964, "Retratos" oferece 12 chapas musicais compostas pelo mestre dos arranjos, Radamés Gnatalli (1906-1988), para o mestre do chorinho, Jacob do Bandolim (1918-1969). Como não sabia ler música direito, Jacob aprendeu de ouvido toda a parte do bandolim, ajudado pelo acordeom de Chiquinho.
Três anos antes desse encontro, Cyro Monteiro (1913-1973) gravou seu primeiro disco na Columbia (ou CBS), atual Sony Music. Título: "Sr. Samba". Também faz parte do pacote. Cadê a contracapa escrita por Vinicius de Moraes para o LP? A usura comeu.
Quando embrulha as suas velharias, a Revivendo faz questão de incluir as letras de todas as músicas, pôr as datas das gravações e não economiza espaço para informações aparentemente irrelevantes, como, digamos, a origem do apelido "Formigão", dado ao Cyro Monteiro. Não faz mais que a sua obrigação. A memória musical não se esgota no som. Ela também é escrita.
Exceção à regra, o CD com a trilha de "Pobre Menina Rica" traz no verso uma data: 1968. Brindemos? Tsk, tsk. Ela confunde mais do que acrescenta. Afinal, o disco foi gravado em julho de 1964. Na capa, uma dica traiçoeira: "Texto e versos de Vinicius de Moraes". Dentro, lhufas.
Um dos shows mais importantes da bossa nova, nascedouro de três clássicos de Carlos Lyra ("Primavera", "Sabe Você" e "Maria Moita"), "Pobre Menina Rica" quase foi estrelado por Elis Regina, recém-chegada dos Pampas. Tom Jobim, escalado para os arranjos, brecou. "Esta gaúcha é muito caipira. Ainda está cheirando a churrasco", justificou-se. Achava o maestro que Dulce Nunes (então sra. Bené Nunes e, depois, sra. Egberto Gismonti) tinha mais o físico do papel. E Dulce não perdeu o papel nem depois que Tom, cabreiro com a postura engajada do espetáculo, entregou a batuta a Radamés Gnatalli.
Custava ter copiado estas informações do livro do Ruy Castro sobre a bossa nova?
Por falar nela, destacam-se na coleção dois outros instrumentistas daquela escola: Edison Machado, talvez o mais jazzístico baterista brasileiro de sua geração, morto em setembro de 1990, e Baden Powell, com um disco gravado na Alemanha em 1973. "Edison Machado É Samba Novo", lançado em 1965, põe em relevo um músico tão expressivo quanto esquecido, Moacir Santos, que também brilha em "Pobre Menina Rica" e merecia ter sua obra-prima, "Coisas", remasterizada em CD. Não contem com a Sony. "Coisas" saiu pela Forma, há muito extinta.
O resto da coleção é nota de rodapé. Se tanto. Entre reedições nada urgentes e outras perfeitamente dispensáveis, os dois CDs de Elis Regina se sobressaem apenas por razões arqueológicas. Pertencem ambos à fase em que ela não era mais carne nem ainda peixe. Ou seja, já não era mais a sucessora de Celly Campello, mas apenas a crisálida da Elis que só no casulo da Philips haveria de desabrochar.

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