São Paulo, quarta-feira, 22 de março de 1995
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O controle público do Estado

TARSO GENRO; JOSÉ GENOINO

Nem tudo que é público é estatal; nem tudo que é estatal é de interesse público
TARSO GENRO e JOSÉ GENOINO
O debate sobre a reforma do Estado tem sido pautado, em regra, por duas posições que representam o passado e que, segundo a habilidade semântica dos interlocutores, podem ser revestidas —cada uma delas— de uma certa "dignidade modernizante".
De um lado está a defesa do estatismo tradicional, que veladamente sugere que o Estado é a forma juridicamente organizada do bem-comum e por isso uma agência ou empresa estatal é sempre uma "conquista da cidadania".
O estranho é que a tese seja defendida por amplos setores identificados com a idéia do socialismo, pois ela choca-se com a visão construída pela teoria marxista, que atribui às instituições do Estado a função, em última instância, de manter e reproduzir os interesses das classes dominantes.
A defesa do estatismo como princípio também se opõe à própria origem histórica das ideologias libertárias, cujo programa centrava-se na redução dos poderes do Estado e na autonomia da sociedade civil. Uma instituição estatal, na verdade, tanto pode servir ao fascismo, como ao stalinismo; tanto pode ser um instrumento de interesse público como pode ser uma instituição mediadora de interesses privados e particularistas. Depende do programa geral de governo em que esta instituição está inserida e do grau de controle, direto e indireto, que a sociedade tem sobre ela.
A outra posição —o "thatcherismo caboclo"— vê no Estado mínimo, aliado à iniciativa dos indivíduos e às de mercado (deixadas a sua máxima espontaneidade), a grande saída para um desenvolvimento baseado na competição que, por si só, levaria à justiça social.
Essa fórmula defende que a disputa entre os homens e entre as empresas tem uma espécie de "pressuposto de equivalência" capaz de induzir as relações sociais mais adequadas ao mundo moderno. É o neoliberalismo, que não conhece a função planejadora —de caráter público— do Estado, reservando, na prática, essa função para as instituições privadas de caráter monopolista e oligopolista.
Assim, através do seu planejamento empresarial, que envolve desde a natureza da pesquisa científica, a indução pela propaganda e o deslocamento de capitais em escala mundial, a sociedade é modelada pelas necessidades da acumulação concentradora, rigorosamente planejada.
É preciso interpor neste debate a questão capaz de colocar uma outra alternativa: nem tudo que é público é estatal; nem tudo que é estatal é de interesse público. Por esse raciocínio pode-se dizer que uma empresa estatal pode servir, ou não, aos interesses da sua corporação interna ou de frações corporativas do empresariado; assim como uma instituição privada pode defender e reproduzir, ou não, o interesse público.
Assim fazem, positivamente o Dieese, a SBPC, a ABI, as CLS (Comissões Locais de Saúde) e tantas outras instituições da sociedade civil que não são órgãos do Estado.
Ocorre que, paralelamente ao desenvolvimento da democracia representativa, a sociedade foi criando variadas instituições privadas de representação direta. Não só de categorias profissionais e econômicas, como também entidades de caráter temático (temas ecológicos, tributários, científicos, culturais etc.), cada uma delas com um certo grau de universalidade nas suas funções, as quais remetem necessariamente para um determinado tipo de vínculo ou de demandas sobre o Estado.
Trata-se do surgimento de uma esfera pública não-estatal que se agrega às instituições tradicionais de caráter estatal, como os parlamentos e os tribunais, que se tornam tanto mais importantes quanto mais se tornam ineficientes os órgãos tradicionais de controle e representação previstos pela Constituição. Numa sociedade cada vez mais complexa e dotada de interesses legítimos e conflitantes, o surgimento dessa esfera é um antídoto social à burocratização do Estado e ao seu afastamento do cotidiano dos cidadãos.
Já há, portanto, na sociedade atual, o início de um controle público não-estatal sobre o Estado, e ele se torna cada vez mais atuante e capaz de imprimir uma nova dinâmica, não só às instituições, empresas e agências do Estado, mas à própria democracia representativa, que sofre as restrições de um jogo de poder e influência cada vez mais complexo na sociedade de classes. Trata-se de agregar, processualmente, à democracia representativa elementos reais de democracia direta, participativa, que valorizam o cidadão com iniciativa —uma livre iniciativa da cidadania capaz de revalorizar a cena pública.
Reconhecer e dar força cogente ao controle público não-estatal significa aprofundar o regime democrático e dar consequência à combinação da democracia representativa com a representação direta, prevista no art. 1º, parágrafo único, da própria Constituição.
Essa combinação, em vez de possibilitar um processo de "estatização da sociedade" ou de selvageria neoliberal, "civiliza" o Estado gerando um controle externo, capaz de limitar sua lógica corporativa ou seu atrelamento a interesses puramente privados.
A participação direta da sociedade na elaboração do Orçamento da União e na sua execução (além das funções do Parlamento no particular), o controle externo do Poder Judiciário por um Conselho público (Parlamento, Judiciário e sociedade civil) e a criação de Conselhos de Controle da sociedade civil sobre as estatais seriam um novo passo democrático para o país.
Os referidos conselhos da sociedade civil, com representação de trabalhadores, empresários e instituições de caráter científico e de profissionais autônomos, deveriam ter o poder de aprovar ou rejeitar o planejamento das empresas do Estado e, inclusive, vetar políticas salariais corporativas, que protegem minorias encasteladas nas cúpulas, dando a idéia falsa de que o conjunto dos seus funcionários são privilegiados.
Essas reformas seriam capazes de desestatizar a sociedade, estimulando a iniciativa política dos cidadãos e valorizando a sua autonomia. E também iniciariam um movimento real de desprivatização do Estado que, pelo menos no Brasil, sempre esteve principalmente a serviço dos privilégios oligárquicos e corporativos, inacessível e estranho ao homem do povo que ele deveria servir.

TARSO GENRO, 48, advogado, é prefeito de Porto Alegre (RS). Foi deputado federal pelo PT do Rio Grande do Sul (1989-90). É autor de "Na Contramão da Pré-História" (1993) e "Utopia Possível" (1994).

JOSÉ GENOINO, 47, é deputado federal pelo PT de São Paulo. Foi líder do partido na Câmara dos Deputados (1991).

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