São Paulo, domingo, 26 de março de 1995
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Com a palavra, o dr. Freud

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

São Paulo sediará entre sexta-feira e domingo a terceira e última conferência internacional que comemora os 75 anos do "International Journal of Psycho-Analysis" (Revista Internacional de Psicanálise). As duas primeiras ocorreram, no ano passado, em Nova York e Londres.
A publicação é a porta-voz oficiosa da IPA (Associação Internacional de Psicanálise) —geralmente considerada como a guardiã da ortodoxia freudiana— e, com seus 8.000 assinantes, a de mais ampla penetração mundial.
O encontro de São Paulo tem entre seus organizadores o psicanalista Elias Mallet da Rocha Barros, 47. Eis os principais trechos de sua entrevista à Folha.

Folha - Em que altura da história da psicanálise aparece o "International Journal"?
Elias Mallet Rocha Barros - O "International Journal" aparece por ocasião da mudança de Freud para Londres, quando do advento do nazismo. Ernest Jones propõe que a publicação oficial do movimento psicanalítico, até então editada em alemão e em Viena, passasse a ser publicada em Londres, em inglês. Muda-se então a língua da psicanálise.
Folha - Por isso que foi inglesa a primeira tradução das obras completas de Freud?
Rocha Barros - Sim, com todas as implicações ideológicas que isso implica. Muitos, como Anna Freud, acreditavam que essa tradução, a "Standard Edition", era mais fiel em conjunto ao pensamento de seu pai que os próprios textos em alemão.
Folha - A Inglaterra já não tinha na época tradição psicanalítica, com Melanie Klein?
Rocha Barros - Ela já estava há algum tempo na Inglaterra. Mas, mesmo assim, foi preciso que a psicanálise se cercasse de certos cuidados. Um dos estudiosos do assunto, o analista italiano Riccardo Steiner, relata o esforço de Jones para que o "International Journal", apesar de publicado em inglês, não caísse nas mãos dos norte-americanos. Ele temia as deformações que poderiam surgir.
Folha - A conferência enfatizará o fato clínico. Seria este o denominador comum para o que seja o fato psicanalítico?
Rocha Barros - Eu diria que sim. A conferência está centrada em torno do que observamos, de como observamos, como conceituamos aquilo que estamos observamos, e como comunicamos isso ao paciente e aos colegas.
Folha - O sr. afirma que o tema será debatido por representantes de "diversas escolas". Como se dará o debate?
Rocha Barros - Um esclarecimento, antes de mais nada. O "Journal" não é uma publicação da IPA. Ele é uma publicação da Sociedade Britânica de Psicanálise. Mas funciona como porta-voz da psicanálise internacional. Até recentemente, seu corpo editorial era britânico, com um pouquinho de poder dado a um co-editor norte-americano. Nos últimos 15 anos, o "International Journal" se deu conta de que não tinha ancoramento em outras áreas geográficas. Criaram-se então um comitê editorial americano, um comitê editorial europeu e, mais recentemente, também um latino-americano.
Folha - Que dimensão teórica esse fato possui?
Rocha Barros - Uma dimensão muito importante. Quem é dono da língua domina o conhecimento. O "Journal" aceitava há até algum tempo só originais em inglês.
Folha - Numa analogia grosseira, seria possível dizer que o "Journal" e a IPA adotaram como estratégia atuar contra os "adversários" lá onde eles se encontram? Afinal, os seguidores de Lacan são bem poderosos no Brasil e na Argentina.
Rocha Barros - Sem dúvida, mas de uma forma menos organizada. Somos muito desconhecidos ainda no mundo europeu e norte-americano. Há também um certo desconforto. Se o "Journal" tem 8.000 assinantes, a "Revista Brasileira de Psicanálise" tem 1.600. Em termos de público, é a terceira publicação psicanalítica, só superada pela norte-americana.
Folha - Voltemos à questão da pluralidade. A conferência está aberta a todos? Haveria, por exemplo, algum junguiano?
Folha - Não. Só psicanalistas das correntes ligadas à IPA.
Folha - Não seria, então, uma discussão de correntes entre as quais prevalece um consenso? Rocha Barros - No campo das idéias, eu não diria isso. Dentro da IPA há como unanimidade um sistema padronizado de formação e treino dos analistas. Mas, em termos de idéias, os kleinianos ingleses e os analistas do ego norte-americanos, ambos ligados à IPA, estão muito mais distantes que um kleiniano e um lacaniano francês.
Folha - Há alguma dimensão material nessa divergência entre kleinianos e lacanianos?
Rocha Barros - Há questões muito materiais. Nos EUA e em países da Europa, o tratamento é financiado por um sistema de seguro de saúde. Então, é preciso que haja entidades que garantam certos padrões para negociar as condições desse tratamento.
Folha - Ao tomar como tema central o fato clínico, a conferência estaria rejeitando a aplicação da psicanálise a outros campos, como o artístico e o político?
Rocha Barros - É preciso distinguir o fato psicanalítico, que pode ocorrer fora da sessão, e o fato clínico, que só ocorre dentro dela. O fato clínico só se torna observável em condições específicas.
O que se tem procurado afirmar é que apenas por meio da clínica psicanalítica é possível se falar em bases comuns da psicanálise. Toda a psicanálise aplicada parte desse instrumental básico que Freud nos legou. Ao falar sobre fato clínico como sessão, estou enfatizando o método de observação e não estou negando a psicanálise aplicada.
Folha - A única grande inovação pós-Freud foi a descoberta de medicamentos (antidepressivos, por exemplo) que atuam na vida psíquica. Como a psicanálise trata essa questão?
Rocha Barros - A psicanálise não pode recusar a importância de certos medicamentos. Mas os efeitos que eles produzem são singulares a cada paciente, prova de que a subjetividade não é apenas biológica. O homem é também e sobretudo um "animal simbólico".

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