São Paulo, domingo, 26 de março de 1995
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A sedução do apocalipse

CONTARDO CALLIGARIS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Anos atrás, Umberto Eco propôs uma distinção —que se tornou famosa— entre intelectuais apocalípticos e integrados. Para explicá-la, um exemplo.
As duas últimas décadas viram uma progressiva expansão da informática e de seu uso. A nova tecnologia modifica e ainda modificará nossa maneira de viver, assim como nossa organização econômica e social.
Versão apocalíptica: a nova tecnologia dividirá o mundo, mais cruelmente do que nunca, entre os mestres do computador de um lado e o desemprego qualificado do outro; a socialidade que ela já impõe nos afastará de nossos semelhantes e constituirá a máquina como fonte e mediadora do diálogo social, interlocutor privilegiado, Leviatã do futuro...
Versão integrada: graças à nova tecnologia, uma parte relevante do trabalho social poderá ser economizada, inaugurando possibilidades inéditas de tempo de lazer. A facilidade de comunicação permitirá novas e talvez mais autênticas formas de expressão democrática...
Pois é, desde a idéia de Eco, os apocalípticos pioraram: são cada vez mais alarmistas. Os integrados melhoraram: não defendem necessariamente nenhum status quo, mas tentam aceitar o novo, conhecê-lo antes de julgá-lo.
Fui recentemente assistir a um debate sobre nova tecnologia organizado pelo Departamento de Francês da New York University e pela Maison Française de Nova York. Neil Postman (professor a NYU) e Alain Finkielkraut (ensaísta francês) se fizeram de apocalípticos: prometeram catástrofes ecológicas, abstratas alienações em retorno e também revelaram sua ignorância da própria tecnologia que estava sendo discutida.
Enfim, me perguntei, porque intelectuais de porte se fariam de palhaços, abordando temas que desconhecem, ou gritando um descabido "Apocalypse Now"?
Simples. O apocalipse sempre vendeu bem. Hoje, particularmente, seduz os intelectuais. As democracias, apesar dos percalços, amadurecem, e com isso a função social do intelectual apodrece. Passaram os tempos onde se esperava de Gide e Sartre que dissessem o que era certo pensar. Listas de doutorados, fellowships honrosas, livros publicados e mesmo aparições na TV protegem cada vez menos o conferencista de um "não concordo" assassino que qualquer um, da platéia, se autoriza a enunciar. Isto é particularmente evidente onde a democracia é mais antiga —nos EUA—, mas já é sensível nas mais jovens democracias européias.
O intelectual de hoje, perdido na massa, frustrado em sua função de elite, recorre ao apocalipse. Se o povo recusa venerar os filósofos da República platônica, talvez Cassandra chame a atenção.
Por exemplo, eu mesmo devo ter dito e escrito mais de uma vez —com tom implícito ou explícito de alarme apocalíptico— que a sociedade contemporânea é animada e dominada pelas imagens. Órfãos de valores e tradições, idealizaríamos e amaríamos cegamente qualquer imagem que a cultura de massa sugere como modelo possível.
Mas eis que 15 dias atrás, Frank Sweartlow, editor de "Hard Copy", o maior tablóide da televisão americana (transmitido por um pool de redes) deu uma palestra na New School for Social Research de Nova York, a convite de Marshall Bonsky e meu (pois coordenamos juntos uma série de encontros sobre a imagem neste fim de século). Para entender o que é "Hard Copy", pensem em "Aqui Agora", mas com um tom mais crítico e melhor pensado: 30 minutos de imagens falantes, um texto conciso, direto e —coisa rara nos EUA— frequentemente irônico. Tudo isso para um mínimo de 10 milhões de telespectadores por dia.
Sweartlow trouxe duas fitas para estimular a discussão. A primeira era uma reportagem sobre a jovem Hollywood. Os video-paparazzi tinham filmado jovens atores conhecidos, em sua vida noturna. Apareciam totalmente bêbados, falava-se muito de droga, de mortos de overdose, de salas de reanimação. Tratava-se, em suma, de transmitir o lado preto das imagens demasiado bonitas que Hollywood nos ajuda a idealizar. Sweartlow manifestava sua intenção de comprometer um pouco a credibilidade dos estereótipos invejáveis que são o fundo do patrimônio cultural contemporâneo.
Com qual esperança? Em nossa sociedade, os clichês hollywoodianos são um cimento social indispensável. Por outro lado, o desconforto de uma sociedade reunida ao redor de estereótipos imaginários comuns é que esses sempre se tornam persecutórios. Nunca conseguimos ser tão ideais quanto os clichês de sucesso e felicidade que a cultura nos propõe. Mesmo se decorarmos nossas casas como um set de filme e por acaso fizer o mesmo sol que no spot publicitário, sempre vai faltar algo.
Ora, os ideais que são propostos vêm juntos como a obrigação de imitá-los. Portanto, eles nos perseguem como modelos impossíveis de serem alcançados. Nestas condições, os tablóides servem para acalmar nossa paranóia. Graças a eles, os estereótipos da felicidade se revelam menos uniformemente brilhosos; eles nos perseguem menos, pois diminui nosso desespero quando a eles nos comparamos.
Só que, apesar das intenções de Sweartlow, pareceu que de fato a reportagem estava longe de atingir seu propósito. A vida dissoluta e queimada dos jovens de Hollywood constituiria provavelmente, para os telespectadores, um charme a mais do estereótipo hollywoodiano (mesmo se declarassem sua indignação). As mortes mais estúpidas, James Dean porsheando bêbado, Elvis cheio de pílulas e por aí vai são integradas ao mito. A tragédia do homem e da mulher clichês ao final sempre nos aparecem como provas definitivas que eles gozam muito mais do que nós. Gozam, aliás, ao risco e desprezo de suas vidas. São verdadeiros mestres antigos. Parece valer neste caso a idéia fundamental de McLuhan: "a mensagem é a mídia", ou seja: pouco importa que se mostre um horrível destino, um vazio sinistro ou uma fraqueza babaca, qualquer coisa —passando na televisão— alimentará o estereótipo, será integrada a ele, idealizada como inalcançável modelo.
Ora, Sweartlow trazia também duas outras fitas. Ambas propunham uma crítica de Newt Gingrich, o novo speaker da câmara dos deputados —neste momento, a figura mais visível da política norte-americana. "Hard Copy" recolheu um estupidário da fala pública de Gingrich, o qual, dotado de um humor às vezes duvidoso, se presta bem a este tipo de exercício. Assim, vimos Gingrich afirmando que as mulheres não podem ser militares combatentes porque depois de 30 dias em uma trincheira pegam infecções, ou então que as mulheres, mais do que os homens, prestam para trabalhar sentadas atrás de uma mesa, pois os homens seriam tomados pelo repentino desejo de caçar girafas etc.
A emissão, dias antes, recebera 260 mil telefonemas indignados contra o novo speaker. A coisa se confirmou com a platéia da New School. Ninguém se atreveu a dizer, como para a emissão precedente, que as palavras infelizes de Gingrich acabariam de qualquer forma servindo sua presença na mídia, ou se integrariam ao estereótipo ideal de sua personagem.
Por que as coisas seriam diferentes para Newt Gingrich e para Hollywood? Dir-se-á, em um primeiro momento, que há uma diferença entre as práticas dissolutas e gozadoras dos jovens stars e os propósitos machistas de Gingrich. Não teria o mesmo efeito mostrar como alguém goza e mostrar que pensa, por exemplo, diferente de nós. Mas o argumento não é suficiente. Basta considerar que muitos estereótipos hollywoodianos são construídos ao redor de afirmações tão politicamente desagradáveis quanto as de Gingrich. Não se precisa recorrer sempre a John Wayne. O ator Michel Douglas, por exemplo, enumera besteiras bem piores do que as saídas de Gingrich, e isso só parece contribuir à idealização de sua imagem.
Resta então concluir que o povo, contrariamente ao que apocalipticamente pensamos às vezes, não é tão burro assim. Embora o marketing de um político possa ser aparentemente igual ao de um sabonete, muitos espectadores —muito mais do que pensam os apocalípticos— não confundem Hollywood com Washington. Ou seja: mesmo que o império das imagens seja total, ele não se confunde com o império do mal ou com o triunfo definitivo da alienação. Apesar da mídia comum, nem todas as imagens se valem.
Moral da história: pela experiência de Sweartlow, não é preciso condenar nossos tempos como época de um obscurantismo caleidoscópico, onde só vale a sedução das imagens e todas as imagens nos seduzem. Seria melhor, ao contrário, abandonar o fácil tom da apocalipse e se perguntar como acontece que, justamente neste mundo de imagens (e não apesar dele), é de fato possível comparar, recusar, escolher. Em breve, agir e pensar.

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