São Paulo, domingo, 26 de março de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

'Sei tudo sobre quase nada'

JEAN DAUSSET

O que não sei: tudo ou quase tudo. Dizem que a dúvida é essencial na pesquisa. Se há no entanto uma certeza, é porque ignoro tudo ou quase tudo. E tenho raiva disso.
Houve um tempo em que um homem podia adquirir todo o saber de sua época. Hoje não. Há apenas pequenos sábios que sabem tudo sobre quase nada. Sou um deles...
Mas tenho também a sorte de ser um homem que, durante meio século, viu se expandir diante dos olhos espantados uma aventura científica e humana absolutamente inédita, inesperada, até inimaginável: a de uma ciência imperial bagunçando todas as previsões, não só invadindo nossa vida particular, ameaçando nosso meio ambiente e talvez até a sobrevida da espécie humana, mas ainda modificando nossas concepções intelectuais e filosóficas, até metafísicas.
Minha geração teve o privilégio de viver uma época única da humanidade... Na época de meus estudos de medicina, um imenso avanço já havia sido feito na luta contra o sofrimento e a morte.
Muitas doenças haviam sido compreendidas, até vencidas, graças à vacinação. Outras permaneciam ameaçadoras e assisti a sua cura, até então impossível, graças às sulfamidas, seguidas pela penicilina e por vários antibióticos.
Durante muito tempo, a defesa do organismo contra a agressão só se concebia pelos anticorpos circulantes, naturais ou provocados pela imunização. Algumas pessoas pensavam que esses anticorpos "moldavam-se" sobre seu antígeno para adquirir sua especificidade delicada, outras afirmavam que eles eram todos pré-formados.
Mas como o organismo pode prever a imensidade de antígenos possíveis e formar armas contra todos?
A natureza adora o método combinatório. Combinando diferentes segmentos de um mesmo gene, ela chega a um número astronômico de possibilidades. Esse é o segredo da imunidade dita "humoral", cujos anticorpos se expandem nos "humores".
A outra janela da defesa do organismo é a resposta dita "celular", que permanece ainda a ser explorada. Foi nessa aventura que me lancei.
Partidário da transfusão por necessidade econômica e depois militar, conheci bem os grupos sanguíneos do sistema A, B e O, quando, em 1942, tomei conhecimento da descoberta dos grupos Rh (positivo ou negativo).
Se havia diferenças individuais contidas nos glóbulos vermelhos (os tipos A, B e O de sangue), por que não haveria outras contidas nos glóbulos brancos ou leucócitos (que fazem a defesa imunológica)?
Para verificar essa hipótese, coloquei glóbulos brancos de um doador em contato com o soro de um doente que havia recebido muitas transfusões. Vi a olho nu enormes coágulos se formarem. Foi assim que nasceu o embrião do sistema de grupo de tecidos chamado HLA.
Essa experiência estava certamente programada, baseada numa hipótese e o resultado —uma aglutinação— esperado. Não foi, portanto, observação de um fato surgido por acaso. E, contudo, o acaso desempenhou um certo papel... De fato, era preciso que o soro utilizado possuísse anticorpos contra leucócitos...
Interessei-me em demonstrar que esses grupos leucocitários são de fato grupos tissulares importantes em transplante.
Foi assim que começou essa bela aventura, escrita também por milhares de pesquisadores, que conduziu à introdução de uma nova terapêutica: o transplante, sonho de longa data da humanidade.
Mas não se deve parar aí. Ainda há muitas rejeições de enxertos, muitas complicações diversas ainda ensombrecem o futuro dos doentes.
Um esforço gigantesco precisa ser feito para atingir "o que não se sabe". Em resumo, provocar voluntariamente a tolerância pelo receptor de um órgão incompatível.
Curiosamente essa tolerância — que bela palavra! — passa ainda pelo sistema HLA, que, sabe-se agora, está no centro da defesa do organismo.
De fato, para se defender do mundo exterior — o "não próprio" —, é primeiro necessário conhecer a si próprio — o "próprio", a fim de nunca se atacar. Ora, o próprio é marcado pelos antígenos do sistema HLA, como no comércio, por um código de barras, cuja combinação é tal que praticamente cada um de nós tem uma combinação HLA pessoal.
O sistema HLA é o iniciador" da resposta imunológica. Tanto a resposta humoral quanto a resposta celular só se encaixam se as células responsáveis reconheceram o intruso contido na molécula HLA, assegurando-se assim de que sua reação só se fará contra o "próprio" modificado e, portanto, contra o estrangeiro.
Durante muito tempo, a morte atingia principalmente os primeiros anos de vida. Atualmente, a mortalidade infantil —pelo menos nos países industrializados— quase desapareceu, e a esperança de vida aumenta progressivamente, talvez —e por que não?— até atingir a idade biológica limite da espécie humana, em torno de 100-110 anos.

O francês Jean Dausset, nascido em 1916, ganhou o Prêmio Nobel de Medicina em 1980 por suas descobertas sobre os mecanismos da imunidade. Descreveu em 1958 o sistema chamado HLA, que permitiu transplantes de órgãos.

Texto Anterior: O QUE EU NÃO SEI
Próximo Texto: 'Um viajante espacial acabará com as dúvidas?'
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.