São Paulo, segunda-feira, 27 de março de 1995
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Secretário da Anistia quer plano contra abusos no país

ROGÉRIO SIMÕES
DE LONDRES

O novo panorama mundial, com os países mais próximos pelos sistemas de comunicação, facilita a luta pelos direitos humanos. Hoje é muito mais difícil, para os governos, esconder casos de violação dos direitos humanos.
É o que diz o secretário-geral da Anistia Internacional, Pierre Sané, 46, que chega amanhã ao Brasil para uma visita de duas semanas.
Sané vai se encontrar na quarta-feira com o presidente Fernando Henrique Cardoso, a quem deverá entregar um relatório com casos de abusos registrados no país.
Ele irá ainda ao Congresso e visitará os Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco e Rio Grande do Sul, para encontrar governadores e membros de organizações não-governamentais.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista exclusiva que Sané concedeu à Folha na sede da Anistia Internacional, em Londres, na última sexta-feira:

Folha - Qual é sua expectativa em relação ao governo de Fernando Henrique Cardoso sobre a defesa dos direitos humanos?
Pierre Sané - Nós temos que nos certificar de que, quando algumas oportunidades aparecem, elas não sejam perdidas. Nós temos agora realmente uma democracia estabelecida no Brasil e o presidente Fernando Henrique recebeu uma grande quantidade de votos.
Ele tem este apoio popular, tem maioria no Congresso, seu partido controla alguns Estados chaves. Acreditamos que uma oportunidade como esta não deveria ser perdida. Então, se ele exercitar este poder que tem, poderá trazer mudanças chaves em relação à defesa dos direitos humanos.
Folha - O sr. então está otimista sobre a situação do país?
Sané - O potencial está lá. Nós, da Anistia, não podemos mudar a situação do Brasil. A situação será mudada pelo governo e por organizações da sociedade. O presidente tem pela primeira vez na história uma latitude para garantir que todas as promessas feitas ao povo brasileiro sejam transformadas em realidade. Somos otimistas, porque acreditamos que sempre haverá pessoas que irão garantir que o progresso seja materializado. Mesmo que ainda haja problemas, se a vontade política está lá, há uma grande oportunidade para se introduzir novas medidas.
Folha - Temos democracia no Brasil há dez anos. Por que ela não foi capaz de solucionar os abusos dos direitos humanos?
Sané - O fato de você ter democracia não necessariamente leva à solução desses problemas. Uma coisa que eu gostaria de ver no Brasil seria um plano nacional para direitos humanos. Em Viena, na conferência mundial de 93, uma das propostas foi que cada país deveria estabelecer um plano nacional, onde eles colocariam todas as reformas necessárias. E o Brasil estava presidindo o comitê para redigi-la.
Folha - Durante esta nova fase, o senhor acredita que abusos, como o caso de um ladrão desarmado morto por um policial no Rio, ameaçam a legitimidade do novo governo nesta questão?
Sané - A credibilidade e a legitimidade da Presidência e das instituições são colocadas em risco quando aquele policial não é levado à Justiça. Se o policial que atira contra um ladrão desarmado não é, antes de tudo, suspenso do serviço e então trazido à corte e as pessoas vêem que justiça foi feita.
A única forma de mostrar às pessoas que coisas como esta não serão aceitas é havendo uma investigação imparcial dos fatos. Essas pessoas são suspensas do serviço e levadas a julgamento. Isso vai enviar um forte sinal para a polícia, de que isso não é aceitável, e vai fortalecer a confiança das pessoas nas autoridades políticas.
Folha - Hoje há mais comunicação entre os países. Este novo quadro pode ajudar a atacar os abusos?
Sané - A velocidade em comunicação torna possível que uma violação de direitos humanos que seja cometida numa rua do Rio amanhã alcance milhões de pessoas. É muito mais difícil para os governos, hoje, cometer crimes secretamente.
A informação não pode ser reprimida. O que serviu os governos no passado foi a sua habilidade de controlar o fluxo de informação. Eles podiam cometer abusos e o resto do mundo não saberia.
Folha - Como o senhor vê a dificuldade do trabalho da Anistia hoje? Na África do Sul, quando havia o apartheid, não era mais fácil para a Anistia dizer que o sistema era injusto? Hoje não seria mais difícil descobrir onde está o problema?
Sané - Nossa metodologia continua a mesma. Nós começamos sob a perspectiva do indivíduo. Se você diz que é por causa do sistema que violações dos direitos humanos são cometidas, o que você está dizendo é que, se você muda o sistema, você vai parar com as violações. Mas isso não é verdade.
Algumas pessoas diziam que havia problemas no Leste Europeu por causa do comunismo. E portanto, se você acabasse com o comunismo, terminaria com as violações. Mas todos nós sabemos que isso não é verdade. Independentemente do sistema, nós queremos respeito aos direitos humanos.
Começando pela perspectiva do indivíduo, lutamos pelo respeito daquela pessoa. Então, você pode tentar descobrir qual é o melhor sistema para proteger os direitos humanos. Mas isso não é para nós.
No caso da África do Sul, como nós nunca baseamos nossa campanha sob a perspectiva do sistema, o trabalho não mudou. Nós continuamos monitorando o que o governo sul-africano tem feito e pegando casos de pessoas que são presas, torturadas ou mortas.
O que pode ser mais complexo é como mobilizar a opinião pública, porque as pessoas podem pensar que, como o apartheid acabou, não há mais problemas. Não é verdade.
Folha - O senhor acredita que esta dificuldade também exista em relação ao Brasil?
Sané - A ditadura no Brasil terminou há dez anos. Mas pelo mundo todo há uma consciência de que sérias violações de direitos humanos são feitas no Brasil. Eu acho que é, parcialmente, devido à natureza das vítimas, essas crianças que são mortas no Rio e em São Paulo. Mirar uma criança e atirar na sua cabeça é algo que não pode ser aceita na nossa sociedade, independentemente do que esta criança tenha feito.
Quando vem a questão dos direitos humanos, acho que o Brasil tem estado no mapa internacional também porque os envolvidos são em muitos casos policiais. E tem havido pouca investigação. Ou, quando os casos são investigados, poucos chegam a julgamento.

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