São Paulo, segunda-feira, 3 de abril de 1995
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Sartre: que guerra é esta?

ROBERT MAGGIORI

Carnets de la Drôle de Guerre
Jean-Paul Sartre Gallimard, 678 págs.
180 francos

Marmoutier, segunda-feira, 18 de setembro de 1939: "A guerra fantasma. Uma guerra à Kafka. Não consigo senti-la, ela me escapa. Os comunicados não mencionam nossas perdas. Não vi feridos". Domingo, 24: "A voz deve ser velada, distante e neutra. Dar sempre a impressão de retê-la. Com algumas precauções, um sub-oficial pode se permitir brincar com seus homens. E estes dizem: ele não é orgulhoso". Ittenheim, quarta-feira, 18 de outubro: "Noite. Um clarão azul. Noite. Cinco ou seis explosões. Levanto-me, vou tateando até a janela e abro-a. Por um segundo pensei num bombardeio. Nervosismo alegre. Mas vejo que
se trata de uma trovoada e volto a deitar".
Não se sabe muito bem quantos diários -provavelmente 15- Jean-Paul Sartre redigiu durante sua mobilização na Alsácia, entre setembro de 1939 e junho de 1940. O "Diário de uma Guerra Estranha", publicado três anos após a morte do filósofo, continha todos os diários reencontrados até aquela data: os de número 3, 5, 11, 12 e 14. Em junho de 1991, o primeiro de todos, datado de setembro-outubro de 1939, "saiu" num passe de mágica da coleção de um bibliófilo. A obra de 1983 é publicada novamente, agora, com o
título "Carnets de la Drôle de Guerre", aumentada com esse inédito.
Na época de sua mobilização, Sartre já
havia publicado "O Muro", "A Náusea" e,
na esteira da fenomenologia de Husserl, "A Imaginação" (1936), "A Transcendência do Ego" (1937) e "Esboço de uma Teoria das Emoções" (1939). Em nenhum momento se considera um soldado que tenha esquecido seu "destino" de escritor e de filósofo. Certamente ele "está" com os outros, mas um pouco "de lado", ou "acima", na posição do observador: três dias após sua chegada a Marmoutier, já preenchia as primeiras páginas do "Diário". O inédito é uma espécie de mônada leibniziana ou uma fractal: em cada uma de suas partes está o todo, em cada página todo o diário e no diário todo o Sartre. O encontro com o social e com a história acontecerá alguns meses mais tarde, no cativeiro.
Já funciona a pleno vapor a poligrafia sartriana: retratos, ensaios de moral, confidências íntimas, minireportagens, explanações filosóficas, esboços caracterológicos, notas autobiográficas, peças de crítica literária, peças literárias, reflexões políticas e históricas, exercícios de estilo... Sartre a põe em movimento para descrever algumas cenas da vida cotidiana, para forjar, antes de retocar, em "O Ser e o Nada" (1943), seus instrumentos de análise filosófica: "para compreender a história e meu destino" e captar a condição trágida da época, que ele não encontra mais no "pensamento de sobrevôo", nem mesmo na "genial síntese universitária de Husserl" e que lhe possibilitará o encontro "providencial" com Heidegger. Para adivinhar, de longe, o que se passa na cabeça, no corpo e no coração de Wanda, de Bianca ou do Castor. Para imaginar, de longe, o que se passa na cabeça de Hitler e de Stalin, além da linha Maginot.
Mesmo que Sartre ainda não tivesse a responsabilidade do "intelectual" engajado ou do "maŒtre penseur", deve-se notar a extraordinária falta de cuidado com que "analisa" e considera o perigo nazista. As questões que levanta, e as respostas, são um sinal muito fraco da clarividência que se espera de um filósofo, que morou um ano em Berlim, em 1933, exatamente no mesmo momento em que escritores e filósofos, como ele, obrigados a compreender rapidamente o que estava acontecendo - Hannah Arendt, Max Horkheimer, Herbert Marcuse, Walter Benjamin, Thomas Mann, Bertolt Brecht -eram forçados a fugir da Alemanha: "Contra quê lutamos? Contra o nazismo? Mas, há um ano, reina na França um fascismo em forma de larva. A idéia de guerra ideológica era de antes da guerra(...). Aliás, o que é o nazismo hoje? Mein Kampf? Rosenberg? Ribbentrop? E o que é a nossa democracia que suprime as Câmaras e a liberdade de pensar? Lutamos contra um punhado de homens? Hitler e sua claque? Na verdade, há algo de uma incursão punitiva nesta guerra..."
E, no entanto, não conseguimos achar Sartre detestável: ele se engana, mas não quer enganar ninguém. "Preso a sua escritura", tenta saber até que ponto ele mesmo não pode se enganar. A 16 de setembro de 1939, escreve a Simone de Beauvoir: "Estou tranquilo, mas não se trata de uma tranquilidade fundada em boas razões. Eu me trato como mereço neste pequeno caderno preto. Quem o ler depois de minha morte -pois você só o publicará como póstumo- pensará que eu era uma figura desprezível, a menos que você o apresente acompanhado de observações benevolentes e explicativas". E anota, no seu diário, na segunda-feira, 9 de outubro: "Tudo o que escrevo aqui é excessivo. São devaneios e vazio". Depois, na quinta-feira, 19: "Este diário me repugna como efusões de bêbado. No entanto, não o jogarei fora, porque tenho alma de colecionador, e são muitas páginas escritas". E, no mesmo dia: "O parágrafo precedente não foi escrito com inteira sinceridade. Nele nada é falso, mas tudo é por demais estudado. Eu me sentia escrevendo". Donde se vê claramente que, desde o "Diário de Uma Guerra Estranha", Jean-Paul Sartre percebia que seu destino era certamente o de se tornar escritor, mas também personagem em busca de autor, uma espécie de "Jean-Paul Sartre" que, como "Flaubert", teria encontrado seu Sartre. Já se perguntou se Sartre havia desvendado algum segredo da realidade humana e dito algo de verdadeiro sobre o século 20, quando, na terça-feira, 17 de outubro, anotava em seu caderninho preto: "É a partir do século 20 e de seus problemas que anuncio a mim mesmo o que sou".
Os "Carnets de la Drôle de Guerre" agora republicados na França pela Gallimard são uma versão ampliada com um diário inédito. A Nova Fronteira publicou no Brasil, em 1983, com o título "Diário de uma Guerra Estranha", a primeira edição do diário

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