São Paulo, quarta-feira, 5 de abril de 1995
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Encanto incerto marca obra de Mansfield

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Quando Katherine Mansfield morreu, em 1923, Virginia Woolf escreveu em seu diário: "eu tinha inveja de sua literatura -a única literatura de que tive inveja na vida... ela que podia fazer o que eu não posso! Katherine já não é minha rival."
Depois de uma sequência de traduções dos livros de Virginia Woolf, editadas pela Nova Fronteira há algum tempo, parece ter chegado o momento de uma redescoberta dos contos dessa sua "rival". Nos últimos anos, publicaram-se quatro coletâneas de Katherine Mansfield no Brasil: pela editora Revan, "Felicidade","A Festa", e, agora, "Je ne Parle Pas Français"; pela Ediouro, "A Festa ao Ar Livre".
Seria exagero dizer que a obra de Katherine Mansfield está entrando em moda. Seus contos, quase todos vagos, delicados e um pouquinho sentimentais, parecem só destinados a cair por acaso nas mãos de um ou outro leitor.
Não há a esperar grande impacto, sem dúvida, de um conto como "Na Praia", que abre a coletânea "Je Ne Parle Pas Français" (no volume da Ediouro, tem o título "Na Baía"). É um daqueles textos em que nada parece acontecer. Amanhece; passa um rebanho de ovelhas; o pastor procura fumo no bolso e acende o cachimbo; pessoas vão à praia; crianças brinca; chega a hora do chá; depois, anoitece. Fica a impressão, ao mesmo tempo luminosa e pouco nítida, de um dia à beira-mar.
Tudo é, de fato, transparente e tênue como num quadro impressionista. Katherine Mansfield traduz para a literatura os efeitos das telas de Renoir ou Monet: é como se a vibração de cada momento fosse tão preciosa, como se cada percepção dos sentidos fosse tão importante, que mal desse tempo para registrá-la; só pode subsistir no papel enquanto esboço, anotação rápida, toque mínimo de pincel.
Já se disse que o impressionismo, em pintura, retratou o último momento de felicidade burguesa -aquelas mocinhas ao piano, aqueles passeios pelo campo e bailes ao ar livre aparecem numa total exuberância de colorido e movimento, mas também num estado como que de evanescência, de fragilidade, quase ao ponto de desaparecer.
"Felicidade" ("Bliss") e "A Festa ao Ar Livre" são os dois contos mais famosos de Katherine Mansfield, e os que precisamente parecem comunicar esse estado de espírito: uma espécie de êxtase sensorial, a percepção de que tudo está perfeito, de que nunca o jardim de casa esteve tão bonito, de que nunca as pessoas estiveram tão bem-vestidas, de que a cozinheira preparou um jantar delicioso... mas eis que surge um detalhe, um foco de instabilidade, uma perturbação quase que insuportável, embora não dramática, na cena descrita.
Em "A Festa Ao Ar Livre", por exemplo, uma família rica prepara-se para receber seus convidados, quando surge a notícia que, numa casa ali perto, onde morava gente pobre, um homem morrera -deixando a mulher e os cinco filhos para sustentar. O que fazer? Suspender a festa? Aquela casa humilde estava perto demais da mansão onde haveria a festa. A família do morto iria ouvir a música. "Pense só em como soaria a banda para aquela pobre mulher", diz Laura Sheridan. "Eles nos ouvirão, mamãe; são quase vizinhos!"
Delicadezas de sensibilidade são, muitas vezes, privilégio de classe. O dilema da família Sheridan, nesse conto, é bem conhecido de nós, brasileiros, onde também os pobres parecem estar "próximos demais", podendo estragar um pouco a festa.
Toda a arte de Katherine Mansfield está em evitar que essa temática transborde para o sentimental. A compaixão pelas empregadas domésticas, professorinhas, crianças pobres, solteironas é constante. É preciso um extremo de sofisticação narrativa, de elegância, de refinamento, para não baratear essa pobreza.
Trata-se, sobretudo, de não dramatizar a infelicidade dos personagens. Talvez seja esta a principal razão para que os contos de Mansfield sejam tão discretos e econômicos quanto ao enredo.
Quanto mais inconclusivos, mais reticentes, mais próximos estão de serem verdadeiras obras-primas. Só percebemos o quanto Katherine Mansfield é boa escritora quando terminamos a última linha do conto -exatamente porque a história parece continuar, ecoando na nossa consciência, depois de interrompida a narração.
Esse estilo de conto inconclusivo, em que pouca coisa parece acontecer, chegou à literatura da língua inglesa graças à influência dos escritores russos -Tchecov especialmente. Num artigo sobre literatura russa, Virginia Woolf relaciona a frouxidão, a inconclusividade do enredo de um conto de Tchecov à imensidão dos espaços, ao vazio populacional daquele país: as histórias parecem resultar de um encontro casual de pessoas numa estrada deserta, no meio da estepe. O espaço isola os personagens, torna-os incapazes de agir e ao mesmo tempo mais efusivos, mais prontos à expansão da alma.
O curioso é que essa técnica narrativa foi transportada para uma Inglaterra onde, como no conto "A Festa ao Ar Livre", os pobres estão "próximos demais"; moram na casa ao lado. O "pathos" de uma escritora como Katherine Mansfield tem, então, de ficar mais restrito, mais contido se comparado à pungência russa.
Mas é também por isso que seus contos nada têm de melancólico; a piedade pelos pobres da vizinhança não impede que se desfrute, como um dom precioso e frágil, das delícias do jardim cercado, em que cada minuto parece nos dar o máximo de prazer, em que a própria vida parece estar a nosso serviço. As histórias de Mansfield são feitas desse incerto encantamento.

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