São Paulo, quarta-feira, 5 de abril de 1995
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Orwell e o câmbio

ANTONIO DELFIM NETTO

Um Rip Van Winkle brasiliense, que tivesse sido posto a dormir pelo inebriante elixir retórico de algum "nouveau économiste" a 1º de julho do ano passado e que, desavisadamente, acordasse às margens do Paranoá na semana passada, teria a impressão de que um túnel do tempo o transportara de volta ao futuro.
Assistiria, surpreso e assustado, a uma terrível metamorfose.
O mundo mudou, gritam espavoridos à beira do grande lago os portadores da modernidade.
É tempo de reconstruir o mundo velho! Mas é preciso cuidado. Temos de fazê-lo mostrando que agora o moderno é o velho.
"O novo é o velho", repete incessantemente o Grande Irmão, agora instalado em Brasília, a nova capital da Oceania que, como no "1984" de Orwell, divide com a Eurásia e a Estásia o controle do mundo.
Quando ligar a televisão, vai ver um representante do mesmo governo que reduziu irresponsavelmente as tarifas alfandegárias e sobrevalorizou o câmbio explicando que o seu aumento não tem nenhuma importância.
Setenta por cento de tarifa é a abertura! Ela punirá só aqueles que ainda não entregaram o seu coração e a sua alma ao Grande Irmão e que, portanto, não estão prontos para morrer.
Afinal, por que resistem em entender que "a paz é a guerra", que "a liberdade é a escravidão", que "a fechadura é a abertura"?
Atiramos pelas costas, mas foi em legítima defesa, confessa o Ministério da Verdade.
Nada mais podíamos fazer. Aconteceu. Somos vítimas. Não tivemos a menor responsabilidade. Pelo contrário.
Alertamos aos exportadores de que eles tinham de conformar-se com o câmbio congelado. A sua falta de patriotismo e suas dúvidas sobre nossas excelsas virtudes os levaram a um comportamento irracional!
Onde é que já se viu deixar de exportar só porque têm prejuízo? Esqueceram-se cedo de que lhes demos a oportunidade de livrarem-se do "sapo barbudo"! São uns ingratos!
E os importadores? Estes mereceriam ser recolhidos a um campo de reeducação (ah, a educação que é tão importante)! Fizeram tudo errado. Aferraram-se ao lucro fácil. Corromperam o povo simples e honesto induzindo-o ao consumo.
Como disse Michel Sapin, o ministro das Finanças da França: "Durante a Revolução Francesa, tais pessoas seriam conhecidas como 'agioteurs' e guilhotinados".
Cuidem-se todos. O Ministério da Verdade está de olho! Quem não acreditar que a taxa de câmbio real está em equilíbrio com a atual taxa nominal -a despeito de: 1) a inflação interna ser dez vezes maior do que a externa civilizada; 2) a taxa de juro interna ser dez vezes maior do que a externa civilizada e 3) termos de reduzir o ritmo de crescimento econômico abaixo da taxa de longo prazo- vai ter de responder por crime de responsabilidade.
O melhor é aceitar logo que "o desequilíbrio é o equilíbrio"! O problema é convencer os investidores estrangeiros da validade dessa proposição em 1995.

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