São Paulo, quinta-feira, 6 de abril de 1995
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A "cobrança por fora" dentro do SUS

GUIDO IVAN DE CARVALHO

"O homem deve ser movido por alguma coisa mais que o prêmio ou o castigo. Alguma coisa que o engrandeça e o dignifique diante de seus próprios olhos. O prazer de combater o bom combate, sem esperar recompensa e sem temer o castigo, apenas pelo prazer de cumprir uma missão sublime."
Adib Jatene, em outubro de 89, ao ingressar na Academia Nacional de Medicina

No dia 3 de março último, neste jornal, o ministro Adib Jatene convocou a sociedade para a discussão sobre o tema do pagamento ao SUS por quem pode pagar pelo atendimento médico-hospitalar.
Louvo o ministro por estimular o debate democrático de uma praxe tão real quanto escamoteada. Entretanto, com o seu prestígio acadêmico, a sua seriedade e o valor de sua contribuição científica, acabou, involuntariamente, dando sinal verde para os profissionais de pouca ética que agem dessa forma e amparando os que ainda tinham algum escrúpulo em cobrar "por fora".
Ao dizer que nenhum médico se incomoda de atender paciente pobre pela tabela SUS, mas fica indignado quanto tem de atender paciente rico que poderia pagar pelos serviços prestados, o ministro Jatene, sem querer, incentiva o confronto entre o médico, já remunerado pelo SUS, e o cidadão usuário do SUS, que paga impostos.
E se a moda pega, o ilícito poderá estender-se dos hospitais contratados pelo SUS ao âmbito da própria administração pública, onde outros profissionais, também servidores públicos, se acharão no direito de cobrar "por fora" sob a alegação de estarem recebendo baixo salário. Isto é um absurdo, pois nenhum servidor público pode fixar o próprio salário, que a tanto equivale a "cobrança por fora". A melhoria da remuneração do servidor público só pode advir de receitas arrecadadas pelo Estado, e na forma da lei.
O importante é que o Poder Público promova e implemente a justiça distributiva, cobrando tributo de quem pode pagar, dê efetivo combate à maciça sonegação fiscal e acabe com o desperdício, a malversação e a pilhagem do dinheiro público. Assim não faltarão recursos para a saúde, a educação e outros setores sociais.
Por outro lado, o professor Jatene acabou emprestando o seu respeitado nome para dar cobertura a um raciocínio tortuoso que grassa na corporação médica: o de que o médico é vítima do sistema de saúde, tem de ganhar bem e diferente dos demais profissionais e preferentemente não deve ser assalariado; aliás, neste particular do vínculo, o médico não leva em conta que a estrutura social e as relações de emprego estão mudando de configuração e conteúdo. Como disse o sociólogo Robert Castel em entrevista a este Jornal, em 26 de fevereiro ("Mais!"), "o assalariamento, hoje, tornou-se um status, por envolver não apenas a retribuição monetária mas um certo número de garantias e direitos, essencialmente o direito ao trabalho e à proteção social".
Enfim, os aspectos negativos da questão aqui aflorados são mazelas de um sistema ainda não implementado na sua plenitude. Se o modelo assistencial do SUS -descentralização, regionalização, hierarquização, integralidade do atendimento, acesso universal e igualitário e financiamento suficiente- for executado e desenvolvido como está na lei, as distorções finalísticas e os desvios de procedimento tenderão a desaparecer.
E o ministro Adib Jatene tem condições para assumir o compromisso de implementar plenamente o SUS, enfrentando a resistência de alguns setores do governo e da sociedade e trazendo para o Fundo Nacional de Saúde recursos que nele deveriam estar.

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