São Paulo, sexta-feira, 7 de abril de 1995
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Abismos impedem integração de 'marginais'

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Erramos: 08/04/95
Já estamos razoavelmente acostumados ao assédio de mendigos, guardadores de carros, vendedores de Mentex e crianças miseráveis. O desconforto ético, a rotineira irritação de procurar moedas na carteira enquanto o sinal está para ficar verde, os diferente estilos de mendicância -do choroso ao sorridente-, tudo isso existe, mas não perturba em demasia.
Você dá um trocado, ou diz que não tem -no fundo tanto faz, pois o mal-estar moral é praticamente o mesmo nos dois casos-, e segue em frente, até o próximo farol vermelho. As pequenas amostras cotidianas da tragédia social se dissipam com facilidade da memória.
Comigo aconteceu uma coisa um pouco diferente esta semana. Eu tinha ido a um supermercado. Dois meninos aparentando seis anos de idade pediram para guardar o carro. Já é meio irônico, dois guardadores tão pequenos. Disse que sim, tudo bem.
O governo baixou medidas contra a importação de automóveis e eletrodomésticos; mas os supermercados continuam uma beleza. O mais trivial Pão de Açúcar do bairro vive glórias de free-shop. Até água mineral trazem da França. Como é que alguém pode fazer questão de Perrier em vez de tomar um club-soda qualquer?
O fato é que me esbaldei. Fiz compras as mais improváveis: fiz turismo no meu carrinho de supermercado; na saída, os dois guardadores me fizeram sentir que estava mesmo em São Paulo.
Minha consciência já estava acendendo uma luz amarela, mas até aí tudo normal. Foi quando um dos garotos, o menor deles, disse uma coisa que não entendi direito. Só na terceira vez a frase terminou fazendo sentido: "Tio, leva a gente para casa."
O que eles queriam? Que eu os adotasse? O menino maior explicou: "É que a gente ficou de voltar para casa às cinco, já são sete, minha mãe deve estar preocupada". Eles queriam um carona. Achei estranho que tivessem uma mãe preocupada com horários. Em todo caso, fiquei aliviado: não era um pedido de adoção. Perguntei se era longe onde eles moravam. Novamente, não consegui entender o que diziam. Falaram vagamente de um ponto de ônibus em que poderiam ficar, e enfim pus os dois dentro do carro. Não sou bom de puxar conversa; eles eram péssimos para falar. Perguntei se estudavam, se eram irmãos, se o caminho era aquele mesmo... mas o fato é que eu simplesmente não conseguia compreender a língua deles. Também deviam estar intimidados ou simplesmente interessados na pura experiência de andar de carro. Desisti. Incomunicabilidade total.
Sinal vermelho. Apareceu um vendedor de Suflair. Três por cinco. Eu estava me sentindo bom demais para recusar a oferta. Comprei. Dei as três barras de chocolate para os dois meninos. Eles murmuraram alguma coisa incompreensível. Até que um deles me devolveu um chocolate. "Não, tio. Fica este para o senhor."
Foi assim que ganhei um chocolate de dois menores carentes. Era, certamente, uma retribuição pela carona. Ou, talvez, a melhor maneira que encontraram para resolver um problema aritmético difícil.
Mas, pensando melhor, cheguei a outra hipótese. É que, entre eles e eu, não havia outra forma de comunicação exceto... a da esmola; o terceiro Suflair era o excedente, o trocado que eles quiseram me dar. Não havia como trocar palavras. Se nós, os "tios" do sinal vermelho, existimos como provedores de moeda, é recebendo um chocolate de volta que ficamos quitados da carona; aquilo desobrigou-nos de conversar. Acaba de sair, pela editora Escuta, um livro chamado "Na Sombra da Cidade". Reúne artigos de psicanálise, antropologia, filosofia e economia: desde Paul Singer narrando a experiência de planejamento de administração Luiza Erundina a Olgária Matos sobre Walter Benjamin.
Dois textos do livro parecem vir ao encontro do episódio que contei. A psicanalista Anna Verônica Vautner escreve sobre mendigos -os que moram "fora", fora dos prédios, dos carros, das lojas. Estabelece uma analogia sugestiva entre o mendigo e o rico, de um lado, e o predador primitivo e o esbanjador, de outro.
Assim como o homem da Pré-História garantia a sua sobrevivência colhendo, dia a dia, o que encontrava na natureza, o mendigo sobrevive a cada momento daquilo que "vasa" da abundância alheia. "Causa estranheza", diz, que o mendigo esteja a menos de um metro de distância. "Este metro tem de conter os milênios que separam o predador do esbanjador". E pergunto: "Será possível uma troca subjetiva entre esses dois segmentos do social?"
Escrevendo sobre meninos de rua, Cristina Magalhães observa que a luta diária pela sobrevivência traz consigo uma desintegração de qualquer idéia de tempo futuro -e que o processo de estruturação do ego, nessa situação de extrema penúria e ameaça, tende a comprometer-se; fugindo do passado familiar, e desconhecendo como será o dia seguinte, o menino abandonado não tem como ancorar, digamos, sua própria identidade.
Como leigo, não vou muito longe na avaliação da maioria dos artigos do volume. Mas o que me chama a atenção, no enfoque psicanalítico do problema social, é o fato de que as coisas não se reduzem apenas a melhorar as condições de vida dos miseráveis. A desestruturação psíquica, familiar, os abismos de linguagem e de cultura tendem a tornar ainda mais difícil a integração das populações "marginais" a uma situação mais ou menos decente.
Depois de vários sinais vermelhos na av. Santo Amaro, os dois meninos disseram que eu estava indo cada vez mais longe do lugar onde eu deveria deixá-los. Era uma favela na av. Luís Carlos Berrini (na "Belin", dizia o menorzinho), bem no meio daqueles espetaculares prédios de escritórios que há por lá. O menino está certo. A avenida devia chamar-se Belíndia.

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