São Paulo, sábado, 8 de abril de 1995
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Com a pílula, Dona Juana liquidou o mito

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Está ocorrendo, sem que o óbito tenha um dia estabelecido, registrado, o meio século da morte de Don Juan. Ele era, entre os quatro grandes mitos do Ocidente (D. Quixote, Hamlet, Fausto são os outros três), o mais festejado e popular. Por volta de 1950 ele foi varrido da face da terra pela pílula anticoncepcional de uma certa Margaret Sanger, enfermeira, médica.
Sua morte apenas tornou visível o que ninguém antes queria enxergar: quem manda no amor, quem ganha sem cessar a batalha incessante dos doces gemidos e dos queixumes indecentes, sempre foi, como todos sabem agora, Dona Juana.
O que disfarçou um tanto a verdade através dos séculos foi que, doida para engravidar, mas apavorada pela perspectiva de criar o filho sem aliança e sem cartão de crédito, a mulher desvirginada e que não tinha o menor controle sobre uma ovulação que ignorava, punha a culpa da sua barriga no homem que também, coitado, não tinha no coito a menor idéia de que expelia espermatozóides arrogantes, voluntariosos.
Mas o fato inegável é que Juana já era a dona da casa, a anfitriã, a aberta porta. Juan entrava como hóspede e era depois perseguido como ladrão. Podia ir em cana e certamente ia para o inferno. A cena mais pavorosa jamais representada num palco é a do Don Giovanni de Mozart chupado pelas chamas eternas. Juan aperta a mão gelada da estátua vingativa e se abre a goela do Demo, onde ele mergulha dando um berro que devia ser proibido.
É uma pena que o Brasil tenha mergulhado num neocaos tão sofisticado e misterioso que as autoridades suspenderam como desnecessárias as comunicações teatrais entre o Rio e São Paulo. A última peça de Otavio Frias Filho, dedicada a Don Juan, chocou São Paulo, mas não chegou ao Rio. Apresenta Don Juan como a grande vítima dos anos anticoncepcionais: ele não é mais o espadachim e o bandolinista das serenatas irresistíveis e sim um mero ginecologista. E impotente, segundo ouvi dizer.
Estudando Don Juan em prefácio ao livro de Truffaut "O Homem que Amava as Mulheres", Frias Filho comenta o autor da maior injúria que sofreu Juan antes da pílula: aquela com que o fulminou o médico e ensaísta espanhol Gregório Marañon. O verdadeiro Don Juan, o conde que se chamava Villamediana, teria sido fresco, gay. Não quer dizer que não assediava as mulheres e não as regava de espermatozóides, mas na realidade era ta-ra-do por aquilo que o Santo Ofício chamava o pecado nefando.
Marañon, por mais que diga que não, não tem a menor boa vontade com Juan, que "vive obcecado com as mulheres e corre de uma para outra (...) não porque nenhuma lhe satisfaça, mas porque Juan se satisfaz com qualquer uma, com a princesa como com a pescadora, como nos conta, com tanta ênfase, o Tenório da peça. Ora, o tipo do varão perfeito é, precisamente, a grande diferenciação do objeto amoroso, sua localização num tipo feminino fixo (...) um curto repertório de mulheres geralmente parecidas entre si".
Don Juan seria o perfeito adolescente, que só pensa em mulher. Mas no fundo, no fundo, Juan pensa mesmo é em homem. "O físico do genuíno Don Juan confirma sua indecisa varonia. Don Miguel de Mañara, considerado um dos modelos humanos do burlador de Sevilha, aparece, no seu retrato pintado por Murillo, como uma linda donzela.
Casanova, don Juan insigne, no único retrato autêntico que dele conhecemos, tem a per feição e delicadeza de traços de uma mulher. E quase todos os donjuans que conhecemos ficavam longe das normas enérgicas e hirsutas do protótipo do varão. (...) O homem mais puramente homem é aquele que, como Dante, era capaz de consagrar toda sua vida de varão a uma única Beatriz, mesmo quando Beatriz é uma Dulcinéia, isto é, quando não passa de um sonho".
O que me parece mais provável é a tese de Bernard Shaw em "O Homem e o Superhomem", a tese de que Don Juan era bom rapaz, bonitão, mulherengo, vaidoso. Mas disto não passaria e jamais chegaria à categoria de mito se não fosse a avidez com que as Donas Juanas o procuravam, o festejavam, o mimavam: ele era o grande supermercado de espermatozóides. O que elas buscavam nele era a crua vitalidade, a disposição de possuí-las, penetrá-las.
Não é que a mulher, a Dona Juana, se deixasse embriagar pelas cantadas e serenatas daquele melodioso rouxinol de dar corda. Ela é que era a arapuca permanentemente armada, aberta a todos os cânticos, o corpo desejável, hospitaleiro. O que a Dona Juana de Shaw pede a Juan, a todos os Don Juans, é que servissem de pai ao super-homem que ela sabia que existia em suas entranhas. Era uma caçadora de garanhões. Era só o que queria dele, ou deles. Depois de possuí-la e fecundá-la ele podia, como tudo mais, como todos mais, ir para o inferno.
E chega de Don Juan. Não me deixem esquecer os outros mitos, que mencionei ao começar este necrológio. Tratemos, antes de mais nada, do Fausto, esse primo alemão que muito tem atrapalhado a carreira de Juan.
Metafísico, complicadão, Fausto queria, sobretudo, fecundar o fantasma de Helena de Tróia, o que mataria Juan de tédio. No entanto, durante o vestibular que fez com Margarida, sua Gretchen, Fausto imitou muito, apesar da sua afobação teutônica, o fino primo espanhol. A pobre da Gretchen acabou em cana, por ultraje ao pudor, enquanto Fausto virava correntista do Deutsches Bank e morria cercado por um coro de anjos.
O outro mito, Hamlet, também deu a impressão de que tinha a ver com Juan ao fazer Ofélia endoidar, mas era outro enrolado: nunca chegou sequer a concluir se era ou não era, se estava ou não.
Resta-nos um derradeiro, o eterno mito do homem de la Mancha. Esse vive ainda e viverá sempre, rindo dos demais mitos e de todos nós. Foi dos quatro o único a servir de bom grado, desde o primeiro encontro, dona Juana, sua Dulcinéia. Sabia de tudo, o Quixote.

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