São Paulo, domingo, 9 de abril de 1995
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O grifo e o FSE

MARCELO LEITE

Boa parte, talvez a maior, do trabalho do ombudsman é didático: explicar aos leitores como se faz um jornal e por que as coisas são como são, nele. Um dos exemplos que dou com frequência é o do grifo, cuja existência e significado a maioria das pessoas ignora.
Não é pouca coisa. Desconhecer a diferença entre um texto grifado (ou em itálico, como nesta coluna) e um normal (ou redondo), num jornal como a Folha, pode incapacitar o leitor a separar fato de opinião, notícia de comentário.
Leia o que diz o "Novo Manual da Redação", pág. 147, no verbete "grifo":
"Designa letra inclinada à direita. O nome faz referência a Francesco Griffo, que em 1501 gravou um tipo de letra intermediário entre o redondo (de pé) e o manuscrito. No início, essas letras eram chamadas de 'venezianas' ou 'aldinas'. Depois, ficaram conhecidas como 'itálicas'. (...)
"Em regra, na Folha, os textos que não trazem 'hard news' (textos opinativos, textos de apoio, análises, colunas de bastidores) aparecem nesse tipo de letra."
Tal é a origem de muitos mal-entendidos. É comum atender ligações iradas de leitores mais ou menos do seguinte teor: "É um absurdo, o jornal publicou uma notícia defendendo o fim da aposentadoria"; ou "Não dá para entender a Folha, vocês metem o pau em todo mundo, menos no Maluf".
Vai ver e a notícia não é notícia, no primeiro caso, mas uma coluna assinada. A reportagem que deixou de falar mal de Maluf, no segundo, não fez mais do que cumprir com a obrigação (em princípio, deve apenas apresentar os fatos, não qualificá-los).
Isto embora em muitos casos a Folha sempre dê um jeito de editorializar um pouco o noticiário. Por exemplo, com o uso de jocosos sobretítulos, ou "chapéus", como "Coro dos contrários" -um carimbo que o jornal sempre apõe aos textos sobre adversários da reforma constitucional.
A primeira coisa que faço é perguntar ao leitor que se queixa de um texto opinativo se notou que o texto está em grifo. Invariavelmente, ouço de volta a pergunta: "O que é isso?" Outras vezes, a resposta é: "Não tenho a menor idéia, que importância tem isso?"
Explico, então. Explico, inclusive, que a jurisprudência na Folha é de que o ombudsman não se pronuncie sobre as opiniões veiculadas em colunas assinadas. Esta regra foi criada após algumas polêmicas ácidas, como a que opôs o primeiro ombudsman do jornal, Caio Túlio Costa, e o então colunista Paulo Francis (que depois se mudaria para o diário concorrente, "O Estado de S. Paulo").
O problema é que nem sempre as coisas são tão facilmente distinguíveis. Não é só a opinião que por vezes se imiscui indevidamente no noticiário, desequilibrando-o. A Folha tem também algumas colunas com alto teor de informação, como a de Janio de Freitas e a de Luís Nassif.
Em casos extremos, colunas como essas podem tornar-se a única ou principal fonte de informação para os leitores. Foi assim durante o terremoto cambial, em que as revelações mais interessantes surgiam nos textos de Nassif (ou nas suas entrelinhas). Foi assim nesta semana, com o escândalo do mau uso das verbas do Fundo Social de Emergência (FSE), que não fosse por Janio de Freitas talvez não tivesse chegado ao conhecimento dos leitores da Folha.
Salvo engano, o primeiro jornal a tratar do assunto foi o fluminense "O Globo". Na terça-feira, logo abaixo de sua manchete, o diário anunciava: "Palácio do Planalto usa Fundo Social em despesas supérfluas".
O bilionário FSE tinha sido enfiado goela abaixo do Congresso e do país na época da URV sob a desculpa de custear investimentos em educação, saúde, previdência e outros programas sociais. A reportagem de Ascânio Seleme mostrava que o FSE vinha sendo utilizado para pagar de despesas de viagem do ministro José Serra até conversão de aparelhos de videocassete.
A denúncia não poderia ter efeito mais devastador para o governo. Afinal, ele estava começando a negociar uma prorrogação do FSE, inicialmente previsto para terminar este ano.
No dia seguinte, quarta, o Palácio do Planalto reconheceu em nota oficial o desvio. Surpreendentemente, a Folha nada publicou sobre o assunto em suas edições de quarta e de quinta-feira.
Melhor dizendo, publicou sim: a coluna "Escândalo sem escândalo", de Janio de Freitas, na quinta-feira. Além de informar, pela primeira vez aos leitores da Folha, sobre a manipulação das verbas, o colunista dava um puxão de orelhas na imprensa que ignorava a reportagem de "O Globo":
"Se fosse na segunda fase do governo Collor ou na primeira do governo Itamar, as manchetes e as TVs estariam fazendo um escândalo daqueles. E escândalo mais do que justificado: o uso que o governo está dando ao Fundo Social de Emergência é escandalosamente imoral e grosseiramente inconstitucional. Apesar disso, onde o fernandismo e o ministro José Serra têm mais prestígio do que os fatos, ou do que todos os leitores, o noticiário não inclui nem nota oficial do governo admitindo a prática injustificável."
Pegando uma carona na coluna, perguntei na minha crítica da edição de quinta se o jornal já tinha noticiado o escândalo. Na sexta, enfim, pude ler no alto da pág. 1-7 a seguinte notícia: "Planalto usa FSE para comprar goiabada" (curiosamente, o mesmo título saiu na capa de "O Globo").
Lição a ser tirada: a distinção entre notícia e opinião é fundamental para se entender um jornal, mas às vezes a mistura das duas coisas permite compreendê-lo ainda melhor.

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