São Paulo, domingo, 9 de abril de 1995
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Um aprendiz das utopias do sionismo

O desejo de reformas não é um patrimônio da esquerda

MARIO VARGAS LLOSA
ESPECIAL PARA O "EL PAÍS"

Duvido que exista no mundo de hoje uma tarefa mais necessária, mas também mais repleta de dificuldades, do que lutar pela liberdade. Há poucos anos apenas, em 1989, em meio ao feliz estrondo da queda do Muro de Berlim, um vento otimista percorreu o planeta e nos deixou exaltados, pois parecia que aquela batalha havia entrado em sua fase decisiva e que em pouco tempo iria reinar uma ordem internacional baseada em leis justas, no respeito pelos direitos humanos e na coexistência de sociedades e indivíduos em recíproca tolerância.
Apenas seis anos mais tarde, aquela esperança foi sucedida por um pessimismo avassalador. O ressuscitar de velhos demônios que acreditávamos enterrados, ou pelo menos domesticados, como os nacionalismos, os integrismos religiosos, as disputas fronteiriças, os conflitos étnicos e raciais e o aperfeiçoamento e a propagação do terrorismo leva agora muitas pessoas a perder as esperanças e perguntar-se se vale a pena continuar lutando para transformar um mundo que vive caindo como bêbado e que, como nos versos de Shakespeare, parece ter sido criado por um idiota, em meio ao som, à fúria e à falta de sentido.
Quando ouço semelhantes manifestações de masoquismo antropológico ou sinto, eu mesmo, a tentação de sucumbir aos prazeres deletérios do niilismo histórico, costumo fechar os olhos e evocar minhas recordações da primeira viagem que fiz a Israel, em 1976. Estive aqui pela primeira vez há 19 anos, com o pretexto de dar conferências na Universidade Hebraica de Jerusalém.
Na realidade, vim para ver, para averiguar qual era a realidade e qual o mito deste controvertido país, para ouvi-lo, vê-lo, lê-lo e tocá-lo inteiro. Foi uma experiência de apenas algumas semanas, mas que me ensinou muito. Ao pé das muralhas da antiga Jerusalém havia uma moça de cabelos dourados e capa cinzenta flutuando ao vento, que queria fazer todas as revoluções e era contra todas as leis, a começar, como o poeta, pela lei da gravidade. "Meus compatriotas te compraram", ela me dizia. "Você virou sionista!"
Na época, eu já passara por alguns anos de reconstrução intelectual e política, depois de haver renunciado à utopia coletivista e estatizante que abracei em minha juventude, e já defendia, diante desta, como alternativa mais realista e mais humana, o pragmatismo democrático, e me aproximava (ainda com muita desconfiança) do liberalismo. Mas ainda vivia com a perturbadora nostalgia daquilo que sempre parece sobrar à revolução e faltar à democracia: o tumulto da ação, o desprendimento da ascese, a entrega, o risco, em suma, tudo que suscita entusiasmo nos jovens e enfado nos velhos.
Na história da criação de Israel e na cotidiana realidade de sua luta pela sobrevivência, encontrei tudo aquilo, em doses mais do que suficientes para aplacar os apetites de romântico sentimentalismo político que traía -e dos quais nunca pude me livrar inteiramente-, pois aqui comprovei que, para viver a vida como aventura, reformar a sociedade e mudar o rumo da história, não era preciso suprimir a liberdade, passar por cima das leis, instalar um poder abusivo, silenciar as críticas e encarcerar ou matar o opositor e o dissidente.
Desde então, costumo dizer que a maior surpresa daquela viagem a Israel foi o fato de me haver permitido descobrir que, ao contrário do que pensavam meus adversários, muitos de meus amigos e até eu mesmo, minha ruptura com o messianismo autoritário não me havia transformado nesse hominídeo fossilizado o que chamam de "um reacionário", e sim que eu continuava me identificando intimamente com essa vontade de rebeldia e de reforma que era comumente (e injustamente) reconhecida como patrimônio exclusivo da esquerda.
Por essa inestimável lição, contraí uma dívida com Israel, de modo que, olhando bem, acabou se revelando como verdade -como desconfiava minha amiga jerosolimitana em conflito com a lei da gravidade- que aqui se contrai um fraco incurável pelo sionismo, ou pelo menos pelo que existe em sua aventura de utopia realizável, de ficção que encarnou na história e mudou a vida de milhões de pessoas.
Existe, entretanto, outra vertente da utopia sionista, com a qual não posso me sintonizar e que é aquela que legitima o nacionalismo, as fronteiras pátrias, essa cataclísmica concepção de Estado-nação própria do século 19, que já fez correr tanto sangue pelo mundo quanto as guerras da religião. Meu próprio sonho político é o de um mundo em que as fronteiras entrem num processo de declínio irreversível, em que as traças devorem todos os passaportes e que os funcionários alfandegários acompanhem os faraós e os alquimistas, entre as antiguidades de que se ocupam arqueólogos e historiadores.
Se essas fronteiras, que pareciam ser as mais irredutíveis, aquelas que separam ficção de realidade, se dissolveram com acontecimentos tão inesperados quanto a desintegração do império soviético, a reunificação da Alemanha e tantos outros acontecimentos que, de algum tempo para cá, nos deixam mudos todas as manhãs, por que não admitir que a gradativa integração do planeta, já realizada em boa parte graças à internacionalização dos mercados e das comunicações, possa ir se estendendo aos âmbitos administrativo e político, até deixar apenas, como barreiras entre os homens, aquelas que nascem e se desenvolvem livremente, ou seja, as que se originam das línguas e das culturas?
O acordo de paz entre Israel e a OLP é um desses acontecimentos extraordinários dos últimos tempos que nos fascinam e comovem, um desses acontecimentos que até pouco tempo atrás pertenciam ao domínio sedutor da ficção.
É preciso saudar a audácia e a coragem de quem se atreveu a apostar na negociação e na paz, e a abrir as portas a uma futura colaboração entre dois povos que se confrontam num conflito que já causou tanto sofrimento e tantas perdas. E fazer, cada qual, desde nossa situação particular, o possível e o impossível para apoiá-lo, de modo que a engrenagem civilizadora que o acordo pôs em marcha vá vencendo as suspeitas dos desconfiados, conquistando os pessimistas e entusiasmando aos duvidosos, até que seja indestrutível e que o desejo de entendimento e concórdia vença as tentativas dos apaixonados pelo Apocalipse de transformar a história num inferno.

Este texto foi lido pelo autor ao receber o "Prêmio Jerusalém, em Israel, no último dia 15 de março

Copyright Mario Vargas Llosa. Os direitos internacionais deste texto pertencem ao jornal "El País". O Mais! publica quinzenalmente a coluna "Pedra de Toque"

Tradução de CLARA ALLAIN

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