São Paulo, domingo, 9 de abril de 1995
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Bispo anglicano defende sacerdotes homossexuais

ROGÉRIO SIMÕES
DE LONDRES

No último dia 7 de março, a rede de televisão britânica BBC levou ao ar uma entrevista com o bispo anglicano Derek Rawcliffe, 73. Em horário nobre, Rawcliffe disse claramente que era homossexual e estava feliz com isso.
A declaração aumentou o debate sobre o assunto na igreja anglicana, que já admitiu, em um encontro de arcebispos naquela mesma semana, estudar melhor a questão.
Ao mesmo tempo, a atitude de Rawcliffe aumentou a pressão por parte de grupos de homossexuais sobre outros líderes da igreja da Inglaterra para que venham a público e assumam que são gays.
Bispo de Glasgow (Escócia) até 91, quando se aposentou, Rawcliffe é hoje bispo-assistente de Ripon, no norte da Inglaterra.
Depois de um relacionamento homossexual na juventude, ele casou-se com Susan Speight, 20 anos mais nova, em 1978. Speight morreu em 1987 e anos depois Rawcliffe percebeu que nunca havia deixado de ser gay.
Em entrevista à Folha, em Londres, o bispo falou sobre sua vida pessoal, o conflito pessoal que enfrentou no passado e a discussão dentro da igreja anglicana sobre o homossexualismo.

Folha - Como foi vir a público, em entrevista na televisão, para dizer que é homossexual?
Derek Rawcliffe - Bem, na verdade eu já havia assumido isso alguns anos atrás, certamente não na frente da televisão, mas muitas pessoas sabiam. Isso foi mencionado em um dos jornais da igreja na Inglaterra e tenho escrito cartas sobre este tipo de coisa.
Folha - O senhor foi casado por dez anos. O senhor apontaria alguma diferença entre o amor que sentiu por sua mulher e o amor que teve por homens?
Rawcliffe - Não. O amor -não o lado sexual-, mas o amor, é o mesmo.
Folha - A intensidade também era a mesma?
Rawcliffe - Sim, acho que sim. Eu não sou bissexual porque antes de eu conhecer minha mulher, ou desde então, eu nunca me senti atraído por nenhuma outra mulher.
Quando a conheci, ela estava em uma cadeira de rodas. Três anos depois, vim ao Reino Unido, do Pacífico, e ela repentinamente havia sido curada. Eu pensei: "Oh, meu Deus, o senhor quer que eu me case com ela?". Algumas semanas depois, nós ficamos noivos e nos casamos.
Eu estava muito feliz e pensei: "Eu não sou mais gay". Quando ela morreu, eu ainda achava isso, até que as circunstâncias me fizeram perceber que eu ainda era gay e que eu tinha sido todo tempo.
Folha - Quando o senhor era jovem, quando decidiu se tornar um padre, qual era a sua visão sobre o homossexualismo?
Rawcliffe - A partir dos 14 anos, eu tive um namorado, que era dez anos mais velho que eu, e foi por meio dele que eu percebi minha vocação para o sacerdócio.
Um pouco antes de eu completar 18 anos, eu pensei: "O lado sexual de nossa relação está errado". Então disse a ele: "Podemos continuar amigos". Continuamos amigos e eu me tornei totalmente celibatário por cerca de 30 anos.
Folha - Muitos acham que ser gay não é adequado para o papel de um padre...
Rawcliffe - Há centenas de padres gays na igreja, tanto na anglicana como na católica. E bispos também. Não vamos pensar que isso é novo, tem acontecido durante séculos. O cardeal Basil Hume (católico) disse que, como não escolhemos ser gays, não há problema nisso. Mas, como ele disse, não deveria haver sexo entre eles.
O que eu digo é que, como este é um estado que nós não escolhemos e como seres humanos precisamos dar e receber amor, isso é normalmente expressado pelo sexo. Por que isso deveria ser negado às pessoas gays? Por que elas teriam que ser celibatárias?
No tempo da Reforma, a igreja da Inglaterra decidiu derrubar a conexão entre as vocações para o celibato e para o sacerdócio. Ser celibatário é uma vocação, mas a maioria das pessoas não a recebe. A igreja da Inglaterra reconheceu isso, 400 anos atrás. Se é certo não forçar heterossexuais da igreja a serem celibatários, por que fazer isso com os padres gays?
Folha - O senhor considera alguma coisa em sua vida pecado?
Rawcliffe - Bem, eu não vou fazer minha confissão para um jornal... Claro, fiz coisas que eu considero pecado... Quando há qualquer forma de força, manipulação, exploração, então claro que isso é errado, se você é heterossexual ou gay. Mas uma relação com amor, eu acho que é correto.
Folha - O aparecimento da Aids mudou em alguma coisa sua vida, seu comportamento?
Rawcliffe - Quando a doença apareceu, eu estava casado, então isso não mudou em nada minha atividade. Hoje, eu acredito que os homens gays precisam ser cuidadosos nas suas relações, precisam praticar o sexo seguro.
Folha - O senhor já disse que gostaria de ajudar homossexuais em geral. Que tipo de ajuda?
Rawcliffe - Eu entrei para o Movimento Cristão de Gays e Lésbicas tanto para receber como para dar apoio. Eu preciso de apoio, e é o tipo de organização em que um pode apoiar o outro.
Folha - Contra o preconceito?
Rawcliffe - Sim, em qualquer questão. Nas últimas semanas, eu recebi inúmeras cartas, mais de 90% apoiando o que eu havia feito. Não apenas de pessoas gays.
Mas também havia cartas de gays que estão angustiados. Eu não sei se eu posso ajudá-los. Mas eu também preciso de ajuda. Especialmente quando percebi que ainda era gay, procurei ajuda para ser feliz, para me aceitar.
Folha - O senhor nunca discutiu o fato de ser gay com sua mulher?
Rawcliffe - Eu não contei para ela porque, como eu disse, eu pensei que não era mais gay, então não havia necessidade de contar.
Folha - O que o senhor acha da campanha do grupo OutRage! para que membros da igreja e do Parlamento assumam sua homossexualidade?
Rawcliffe - Eu nunca forçaria ninguém a vir a público e assumir. Isso tem que ser uma decisão do indivíduo. Eu não acho que seja a forma certa de campanha. Tudo bem, ajuda a manter toda a questão no domínio público, mas também pode se tornar improdutivo.
Folha - No caso do bispo de Londres, pressionado pelo OutRage!, ele veio a público e disse que a sua sexualidade era uma "área cinzenta". O senhor acha que, se ele fosse um bispo católico, seria mais fácil para ele porque ele não teria que assumir uma vida sexual?
Rawcliffe - Eu não acho que seria diferente para ele, porque ser um padre católico não significa não ter sexualidade. Tenho quase certeza de que ele é celibatário agora. Mas padres católicos, tanto heterossexuais como gays, têm o mesmo tipo de dificuldade que ele.
Folha - O senhor tem algum relacionamento hoje? O senhor está apaixonado?
Rawcliffe - A resposta é não. Eu disse à imprensa que isso é assunto meu e eu não gostaria de falar sobre isso.
Folha - O senhor acredita que é um homem mais feliz hoje?
Rawcliffe - Durante meu casamento, eu era feliz. Mas eu compararia com o período em que era celibatário. Minhas inclinações eram em direção a homens, mas eu era completamente celibatário. Não acho que isso me fez bem.
Eu me tornei duro e me disseram muitas vezes que eu era muito duro com as pessoas. Eu me arrependo daquela época, eu gostaria de já ter o conhecimento de hoje.
Quando, no Pacífico, eu tinha uns 50 anos ou mais e um jovem homem se aproximou, eu percebi que eu o amava, que eu o queria, mas eu pensei: "Isso é errado".
Fui ver meu confessor e esperava que ele dissesse: "Tire isso da cabeça", mas ele disse: "É bom, agora você tem quem amar".
Isso provocou uma mudança em toda a minha atitude e, em vez de ser duro, eu comecei a amar todo mundo de uma nova maneira. Eu acredito que aquilo foi um trabalho de Deus em mim.
Folha - O senhor não tem filhos. Está feliz com isso?
Rawcliffe - Sim, eu nunca quis.
Folha - O senhor acha que vai levar muito tempo para a igreja anglicana, ou mesmo a católica, mudar seu pensamento sobre o homossexualismo?
Rawcliffe - Acho que vai, mas já houve um começo. No caso da igreja católica, o cardeal Hume nunca teria dito o que disse há dez anos. É um grande passo adiante.
Na igreja anglicana, tem havido um movimento à frente nas últimas duas semanas. Não há nenhuma ligação, mas ao mesmo tempo que eu falava, arcebispos de todo mundo estavam se reunindo.
O arcebispo Desmond Tutu, da África do Sul, falou sobre a necessidade de aceitar todo mundo igualmente, não importando raça, cor, cultura, sexo ou orientação sexual. E eles decidiram criar uma comissão para olhar a sexualidade. Se o que eu fiz tem alguma coisa a ver com levar para este caminho, isso é uma coisa boa.

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