São Paulo, segunda-feira, 10 de abril de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A China e nós

CARLOS GUILHERME MOTA

Num artigo publicado em sua prestigiosa coluna neste jornal, no mesmo espaço ocupado pelo saudoso Severo Gomes, o empresário Antonio Ermírio de Moraes chamava a atenção para a emergência óbvia da economia chinesa e dos interesses nacionais na região. Com efeito, neste fim de século estará com idéias muito fora do lugar quem não perceber o despertar chinês nos quadros da chamada globalização da economia e, desculpem, na cultura...
Não se trata apenas de alinhar os números (população, extensão territorial, PIB), mas de apontar o que isso nos interessa diretamente. Da Ásia, impõe-se uma outra história que nos obriga a pensar (e estudar) o novo encontro de civilizações. Por certo, um terremoto que abalará nossos currículos escolares e nosso cotidiano mais do que a queda do Muro de Berlim e a desarticulação da União Soviética.
A desatenção de nossas escolas, universidades e fóruns culturais e econômicos para o conhecimento das civilizações asiáticas é quase total. Nossas universidades -diversamente das norte-americanas e européias- acham-se completamente desequipadas e desestimuladas, e as lideranças intelectuais e empresariais pouco ou nada fazem para responder aos desafios dessa nova situação geopolítica e econômica, mas, sobretudo, cultural.
Apenas um reparo ao importante artigo acima citado: Ermírio de Moraes, apesar de sua lucidez, parece esquecer que nos Estados Unidos, onde estudou, os empresários investem secularmente somas pesadas nos núcleos de pesquisa universitária, que produzem um conhecimento que será fundamental para os novos contatos e redirecionamentos econômicos.
Aqui em São Paulo, somos frequentemente procurados por cidadãos interessados em obter um pouco de informação sobre o Oriente (e também sobre a África), mas estamos desequipados, com nossas bibliotecas estagnadas nos anos 50, e assim por diante.
Em suma, a questão é (esta sim) cultural: estamos despreparados para a tal globalização que está na ordem do dia -e que tem pesos diferentes conforme se esteja num país semiperiférico ou não. Se mal conseguimos nos adequar para a problemática do Mercosul, que dizer do Extremo Oriente? Por que o Brasil não banca algo parecido com o "Dicionário Conciso Português-Chinês", com 1.142 páginas e 50 mil palavras, feito por quatro professores, entre eles a professora Zhao Hongling, da Universidade de Línguas Estrangeiras de Pequim (v. Jaime Spitzcovsky, "O Oriente fala português", Folha, 5/02/95).
Os alertas não provêm apenas de nossos "scholars". Diplomatas -sobretudo os que possuem formação intelectual respeitável- vêm fazendo notar a importância dos processos histórico-políticos e culturais que envolvem essa nova fase das relações Ocidente-Oriente.
O ex-embaixador Amaury Porto de Oliveira, em nosso Instituto de Estudos Avançados (IEA), mas também o cônsul João Almino, em San Francisco (onde Érico Veríssimo igualmente serviu), alertam para a viragem crucial que coincidirá com a passagem do milênio. Felizmente há essa linhagem de intelectuais-diplomatas, como Gelson Fonseca, que não vêem as coisas apenas pelo ângulo econômico: para eles, a diplomacia cuida de negociações que envolvem um complexo componente político-cultural.
Incisivo nesse sentido é o nosso cônsul-geral em Hong Kong, Arnaldo Carrilho, ao lembrar que em 30 de junho de 1997 aquele enclave será reintegrado à soberania chinesa, pondo-se fim a um longo período de humilhação colonial. E que hoje Hong Kong desponta como uma das maiores potências comerciais do Globo, com seu desempenho no ano passado totalizando US$ 345 bilhões em mercadorias e serviços, sua economia situando-se no quarto lugar dentre as de maior competitividade. Além de ser um dos cinco maiores centros de serviços comerciais e financeiros em operação, funciona como centro articulador -espécie de filtro- junto ao enorme mercado da China e os "mais férteis que existem, os do Sudeste Asiático" (cf. "O Dote de Cleópatra", "Jornal do Brasil", 10/02/95).
Para uma cultura como a nossa, em que a transição assume formas escatológicas que derrapam sem sair do lugar, é elucidativo o esforço concentrado e programado de interação entre a China e Hong Kong, com suas diferenças de línguas, de moeda, de conceitos de vida. Universidades dos dois lados exercitam-se na integração e no diálogo.
Claro está que tudo isso tem repercussões em escala planetária. Na costa oeste norte-americana, no equilíbrio atlântico, até na América Latina e -esperemos- nas nossas universidades.
Em Hong Kong, a "Manhattan do Oriente", joga-se uma cartada fundamental na história contemporânea. Não fiquemos mais uma vez por fora, pois o Brasil carrega uma dívida com a China desde os maus tratos que aqui se infligiram aos "chins" ("coolies") importados, tratados como animais por nossas oligarquias no século passado.
Saiamos de nosso etnocentrismo tropicalista e estimulemos a difusão de nossa cultura e de nossa língua -a portuguesa- naquelas partes, no que tem de melhor. Afinal, livros de Jorge Amado, mas também de Machado de Assis, Lima Barreto, Jorge Andrade e Fernando Pessoa são adotados em algumas escolas de Hong Kong, Pequim e Xangai. E no Brasil, quem adota nas escolas e mesmo nas universidades algum escritor ou filósofo da milenar China?
"Casa Grande & Senzala", lembra-se, Weffort?

Texto Anterior: Os ruralistas e o ex-czar da Fazenda
Próximo Texto: Dia Mundial da Saúde; Janio de Freitas; Callado e o Vietnã; Timidez de FHC; Transportes; O deputado sumiu; Secretaria do Menor; Sujeira das cidades; Imprensa oficial; Tarifa da Internet; Cigarro no trânsito
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.