São Paulo, terça-feira, 11 de abril de 1995
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Mauá denuncia nosso desejo de atraso

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Ler o livro "Mauá - Empresário do Império", de Jorge Caldeira (Companhia das Letras) é uma viagem ao presente.
A história deste homem genial que em 1865 tinha dezessete empresas em seis países, que era sócio de milionários ingleses, nobres franceses, capitalistas norte-americanos é a prova de como é antigo o nhenhenhém tropical, de como é resistente nossa pavorosa vocação para o atraso.
Irineu Evangelista de Souza, nosso Barão de Mauá, geria bancos no mundo todo, tinha construído três estradas de ferro, tinha fundições com mais de 1.000 operários, companhias de navegação, mineradoras, usinas de gás, fazendas de gado, e o valor de seus ativos era de 115 mil contos de réis.
Só havia um número no Brasil comparado a este: o orçamento do império de D. Pedro 2º, que era de 95 mil contos de réis.
Pagou caro por seu talento. O país via com desconfiança esta competência além de seu tempo, esta visão empresarial que até hoje seria revolucionária. Comparados ao progressismo de Mauá, nossos empresários de hoje parecem quitandeiros do Império, apesar de seus discursos inflamados na Fiesp.
"Nossa pauta empresarial parece um empreendimento no Morumbi", me diz Jorge Caldeira, o autor do livro, ainda gotejante da empreitada (vitoriosa) de fazer uma história romanceada do Império temperada por funda reflexão sóciopolítica.
Nossos empresários só pensam intramuros; dificilmente têm o desejo criativo que animou este menino pobre que, aos nove anos, já trabalhava no comércio do Rio e que foi instruído por Richard Carruthers, um empresário escocês que o vacinou contra a moleza da lusitanidade.
Mauá sempre foi um desaforo para o mundo ibérico abstrato. Mesmo o bom visconde de Cairu, de certa forma um dos formadores da cabeça de Mauá, não conseguia entender que o trabalho fosse a fonte das riquezas.
Como uma sociedade escravista (com um negro para cada dois brancos) poderia entender isso? Todo senhor de escravos era metafísico, todos louvavam os valores "espirituais", a "inteligência", o "engenho", sendo que o trabalho era considerado um "mero exercício de corpo" (Cairu). Se o senhor de escravos louvasse o trabalho estaria valorizando o negro.
O próprio D. Pedro 2º tinha inveja e ciúme de seu barão. Odiava as coisas materiais. Defrontado com alguma aplicação comercial pura, D. Pedro 2º reagia sempre: "Primeiro temos de mudar os espíritos!".
Dizem que foi o imperador que criou o maldoso trocadilho contra o grande empresário: "Algum mal... há!", riam os fisiológicos e cartoriais da época, roubando nas secretarias ou traficando escravos.
Até hoje Mauá seria um problema para a burrice nacional. Lendo o livro de Jorge Caldeira, parece que em Brasília temos barbalhos e mirandas com perucas empoadas, trancinhas, gravatas, "plastron" e borzeguins revirados.
Tudo é absolutamente igual há 130 anos, em nossa fantástica resistência ao progresso.
O autor do livro me diz: "Pensei em escrever este livro, ao ver a piscina de Joãozinho Malta em Canapi". Pergunto: "Que tem a ver a vida de Mauá com a sórdida barriga daquele gnomo?".
Responde-me Caldeira que nunca tinha entendido o desejo profundo que nossa classe dominante tem de perpetuar a miséria. E que foi estudar Mauá porque percebeu que ele sempre foi um corpo estranho em nossa burguesia molenga.
Caldeira fala: "A piscina só tem sentido se houver miséria em volta; a parabólica moderna precisa da seca e da caveira de boi para reforçar seu luxo. Nosso amor ao fracasso nacional não é inocente. Nosso amor ao fracasso do país só é proporcional à imensa voracidade de nosso individualismo."
Entendo e penso na bancada dos ruralistas. (Que adjetivo eles merecem? "Repugnante", talvez?) A repugnante chantagem desses congressistas só foi possível, não esqueçamos, por obra de outra ponta do nosso defeito ibérico: a náusea, o nariz torcido virando incompetência da bancada do Governo.
Os ruralistas são quase um patrimônio nacional e já estavam previstos no Visconde de Itaboraí, por exemplo, que conseguiu provocar a estatização do banco de Mauá. O Visconde de Itaboraí transformou o ódio surdo dos conservadores contra Mauá em doutrina e a contenção do progresso, com a manutenção da escravidão, em programa.
O Visconde de Itaboraí é um dos fundadores do cartorialismo e odiava Mauá porque este mostrava que a racionalidade é transformar todos os homens em cidadãos. Isto é insuportável para um senhor de escravos e um burguês de hoje.
Há um desejo de atraso em nós. O atraso não é um fracasso; é uma conquista das classes dominantes.
Outra coisa que Mauá denunciava com sua vida era que os males do país mão eram culpa dos "outros", os famosos "outros" históricos. Nosso problema é endógeno, intestinal; nós somos um país de incompetentes e não queremos que a capacidade de alguém venha denunciar nosso erro.
Cérebro e vísceras
Até hoje lutamos contra Mauá e sua racionalidade. E é muito desigual a luta entre a racionalidade e o rabo. O órgão do nhenhenhém nacional não é o cérebro; são as vísceras. O rabo ganha sempre. Do lado do rabo temos todas as forças ancestrais que esmaecem a fina renda da razão.
Mauá queria o fim da escravidão e, em vez disso, teve a guerra do Paraguai. Em vez de apoio, o Imperador mandou constituir uma estrada de ferro paralela à de Mauá, só que dezoito vezes mais cara.
Isto é puro Brasil, isto é Sarney do melhor, isto é a reluzente medalha de Canhedo, a Zona Franca, isto é um delicioso mingau dos vícios que nos levarão fatalmente à hiperinflação (este nosso antigo anseio sexual) e à vitória da derrota. Estamos hoje vivendo um momento privilegiado em matéria de espetáculo brasileiro. A direita fingiu que queria reformas quando só queria derrotar o Lula. Agora, aliviada, se esmera em piadinhas e chalaças contra o desamparado presidente.
O grupo linguístico PT-CUT, que já foi renovador, uiva só de ouvir falar em mudanças. O intestino é mais forte que a razão.
Nós não queremos mudança nenhuma, como mostra a absurda batalha que vemos hoje: um povo enfurecido contra reformas que não conhece, reformas que não foram explicadas por um Executivo "hamletiano", reformas traídas e abandonadas por uma direita irônica.
Não há mais desculpa; não temos Collor para expulsar, inflação para cair, nada. Parece a "revolta da vacina" contra Oswaldo Cruz. Somos a favor da febre amarela.
Só temos o imenso desejo de viver para sempre no seio do Mesmo. O livro de Jorge Caldeira sobre o Barão de Mauá não é sobre o passado, talvez seja uma terrível profecia.

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