São Paulo, quarta-feira, 12 de abril de 1995
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A privatização da siderurgia nacional

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

A retórica, senão a prática, do liberalismo econômico brasileiro não tem muita consistência, para dizer o menos. Quando, nas décadas de 60 e 70, o Japão exibia o seu milagre e o regime militar impunha ao Brasil uma política industrial que, em seus aspectos fundamentais, era muito parecida com a que adotara o Japão, os apologistas do liberalismo citavam então aquela bem-sucedida nação oriental como paradigma do mercado livre e do império da livre iniciativa. Quando, depois, surpreenderam-nos com sua ascensão os tigres asiáticos, passaram estes últimos, na retórica do liberalismo econômico nacional, a ser o exemplo supremo de abertura econômica e do domínio das leis de mercado. Quando, progressivamente, a enorme massa de ignorância nacional sobre aqueles sistemas produtivos e práticas econômicas veio a ser removida, novos paradigmas foram encontrados: o México, a Argentina, o Chile.
Bem, México e Argentina já não são exemplos. E vamos ver o que acontecerá com o Chile quando acabarem suas "indústrias extrativas": cobre, prata e molibdênio (48% de suas exportações em 92); madeira e derivados, pesca etc. O teor médio do cobre do Chile já é três vezes menor do que foi há 40 anos e o "loco" (marisco) já não existe mais, para o desespero de ecologistas e de "gourmets".
Pois bem, esgotados os paradigmas, os liberais estão começando a citar, imaginem só, o próprio Brasil. E o maior exemplo de sucesso para o liberalismo seria a privatização do setor siderúrgico. Portanto, antes que seja tarde demais, é bom entender o que realmente está acontecendo no setor.
É bom lembrar que em uma sociedade moderna, embora o segmento produtivo industrial tipicamente não ocupe mais que, digamos, uns 10% ou 15% da força de trabalho e seja contabilmente responsável por apenas 15% ou 20% de seu PIB, é ele que, em última instância, sustenta os demais setores. O Estado tem, portanto, o direito e, mais do que isso, a obrigação de encontrar meios para preservar, gerar e aprimorar seu setor produtivo, principalmente o básico. E se, em dado momento histórico, for necessário para melhor atingir tais objetivos estatizar, subvencionar, proteger, privatizar, até mesmo cartelizar sua indústria, então não há porque não fazê-lo.
O Japão lastreou sua política industrial durante o período de crescimento acelerado no mais desavergonhado conjunto de iníquas transgressões ao código liberal e mesmo ao senso comum econômico. Protegeu ferozmente seu mercado interno contra a competição internacional e, simultaneamente, incentivou a formação de oligopólios. Cotas restritivas e altas tarifas de importação se associavam a empréstimos subvencionados, dirigidos prioritariamente àquelas empresas oligopolizadas. Assim se formaram ou se fortaleceram os famosos seis primeiros "keiretzus", gigantescos conglomerados empresariais. Juros subvencionados, reserva de mercado e cartelização são mecanismos reconhecidamente nefastos em qualquer teoria econômica. Entretanto, sem estes privilégios o Japão não seria o que é hoje.
A violência antiliberal perpetuada pelos tigres asiáticos não foi menor. Portanto, não se pode, "a priori", condenar o processo de privatização no setor siderúrgico porque ele foi executado a preços convenientes para os compradores e com recursos subsidiados fornecidos por agentes financeiros do Estado. Estes estratagemas são plenamente aceitáveis se os objetivos maiores -a conquista ou preservação de um mercado, a capacitação técnica e produção almejadas- forem alcançados.
Uma vez privatizada, a siderurgia brasileira foi capaz de suprir adequadamente o mercado interno e aumentar sua participação no externo. Este é um fato. É bom lembrar, entretanto, que as acusações de incompetência administrativa dirigidas às empresas estatais, provenientes de certos setores privatistas ou liberais, são falaciosas.
O segmento privatizado do complexo siderúrgico nacional é administrado por executivos provenientes de empresas estatais. E a maior mácula neste segmento deriva justamente do setor privado, da Mendes Júnior. As dificuldades financeiras do setor foram provocadas por sucessivas contenções de preços, que tinham a finalidade de combater a inflação.
Em realidade, como bem reconhece a revista "The Economist", principal promotor da privatização na inglaterra, a experiência naquele país permite concluir que empresas que já eram competentes antes continuaram a sê-lo depois, enquanto as que não eram melhoraram nada ou muito pouco.
A privatização vai, é verdade, impedir o governo de prejudicar as empresas com esse controle perverso dos preços e tarifas. Em realidade, o verdadeiro obstáculo à empresa estatal é o sistema político retrógrado brasileiro. Sua ação malfazeja, todavia, se estende a todos os âmbitos da sociedade. Mas como não há esperanças de mudá-lo a curto prazo, talvez a melhor solução seja mesmo a privatização, embora esta ocorra historicamente com perdas patrimoniais para o Estado.
O grande perigo, entretanto, é a substituição de monopólios estatais, cuja atuação sobre o mercado é facilmente controlável pelo Estado, por oligopólios ou monopólios privados. No Japão, o absoluto domínio exercido pelo governo sobre a indústria permitiu a formação de oligopólios sem maiores prejuízos para a sociedade.
O grupo Acesita, constituído pela Acesita e suas coligadas originais e pelas recém-assimiladas Eletrometal, Sifco e Villares, divide o mercado nacional com o seu fraterno grupo Usiminas-Cosipa-Tubarão e o oligopólio de vergalhões. O primeiro grupo, com aços planos inoxidáveis, aços ao silício e alguns não-planos especiais. O segundo, com aços ao carbono em geral e alguns de baixa liga. O cartel se concretiza com a aquisição da Pains pela Gerdau (se confirmada), oligopolizada com Mendes Júnior e Belgo Mineira no setor de aços longos. O mercado de aços ficou assim dividido em três segmentos estanques, monopolizados. E tudo isto sob o manto protetor e financeiro dos fundos de pensão.
Em princípio, esta é a pior forma de cartelização que existe. Mas foi exatamente isto que a indústria japonesa e os tigres asiáticos fizeram e, ainda por cima, impulsionados pelos seus respectivos governos.
Uma divisão racional do mercado evita esforços inúteis, mas também elimina competição. Permite ajustar os preços pela capacidade do mercado de pagar e não por custos, o que leva a um benfazejo acúmulo de capital. Não obstante, joga para o brejo a sacrossanta ordem de mercado. Fica, pois, aqui, nas barbas do sr. Roberto Campos, a demonstração concreta de que a privatização não leva necessariamente a uma ordem de mercado.

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