São Paulo, sexta-feira, 14 de abril de 1995
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Fermento é o símbolo das paixões humanas

NINA HORTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Fermento é o símbolo das paixões humanas
Há alguns anos, precisei conversar com alguém que me contasse sobre a experiência da comida de um menino judeu no Seder, a ceia na Páscoa judaica.
Conhecia de vista Luiz Kupfer, para quem já havia feito festas de aniversário das filhas, reuniões de amigos. Só vim a perceber que era o maior entusiasta de comida no dia em que precisei entrevistá-lo e ele se mostrou um grande "chacham", o sábio que ensina às crianças o ritual do Seder.
Animou-se logo. Lembrou-se da mãe preparando a casa. Era preciso fazer uma grande faxina, uma limpeza total, escrupulosa, que ia do chão às paredes, passando por bolsos e fundos de gaveta.
Trocavam-se utensílios de cozinha para que desaparecesse qualquer vestígio de fermento, um símbolo das paixões humanas e da corrupção da vida escrava.
Remexiam-se os armários, arejavam-se as roupas, batiam-se os tapetes. E na casa, já resplandecente de limpeza, eram escondidos pedaços de pão. E as crianças saíam de vela em punho à procura deles, iluminando cada canto.
Quem foi menino procurando o pão fermentado na noite escura não pode se esquecer da emoção. Enquanto isso vai chegando a hora da ceia, na noite seguinte, em que a iídiche mame, a mãe judia, vai dar vazão à sua enorme necessidade de nutrir.
Luiz, o meu "chacham", é guloso, um gourmet disfarçado. Até hoje peço emprestada sua coleção de vídeos de comida que ele grava e generosamente cede a quem precise.
Mais um pouco de vídeos e é ele quem vai comandar as festas de sua casa, dispensando cozinheiros de fora... Pois é, voltando ao Pessach, a Páscoa judaica, Luiz foi ficando com a boca cheia de água só de lembrar o macarrão da mãe, feito só com gemas de ovos de pata, um esplendor de amarelo, quase que divino de tão bom...
Não consegui entender muito bem como eram esses fios de ovos. Sem açúcar, feitos na água, e depois temperados como um macarrão comum?
E o "gefilte fish", que não podia faltar, a conserva de beterraba com raiz forte, o frango recheado com raiz forte, o frango recheado com matzá. "Matzá, e não farofa", insistia ele. A língua defumada, os bolinhos de chuchu ralado.
Na hora do bolinho de chuchu, o Luiz se empolgou mais ainda. "Como é que minha mãe podia transformar um reles chuchu numa delícia daquelas? E essas meninas da família que perderam a oportunidade de aprender a fazer os bolinhos de minha mãe! Sem falar nas compotas de frutas secas, e os bolos, os bolos de Pessach... as tortas de maçãs com nozes, os doces..."
A mesa comprida do dia de Pessach reunia a família inteira, e os pedaços de pão ázimo ficavam no centro. A mãe acendia as velas do candelabro antigo, que faziam reviver o Pessach de outras gerações.
Eva, a primeira mulher, apagou as luzes da vida eterna ao desobedecer a Deus. A mãe judia repara o erro cada vez que acende as velas, pedindo por uma longa vida de fertilidade e paz.
Os pedaços de pão ázimo ficavam no centro, e as crianças sumiam com eles, furtivamente. Só eram devolvidos no fim da refeição, em troca de um presente. Estratagema de adulto para que elas ficassem acordadas até o fim do jantar e escutassem a narração do Hagadá, o livro que narra o êxodo, que é o assunto central do Pessach.
Um dos copos, na mesa, se diferencia dos outros, foi o que Luiz me contou. É o do profeta Elias. De acordo com a tradição, ele nunca morreu, arauto do Messias que virá um dia, redimindo os judeus de todo o sofrimento.
À certa altura, enche-se o copo do profeta e as crianças abrem a porta para que ele entre, esperando ansiosas que um milagre faça descer o nível do vinho.
É muito bonita esta festa de Pessach. Neste ano vou tentar fazer macarrão de fios de ovos para meu amigo Luiz Kupfer, mesmo que ele ache que o da mãe era muito, muito melhor! E com certeza era mesmo.
Feliz Pessach! Feliz Páscoa!
Uma receita
Macarrão para servir dentro da sopa de galinha.
Pegue três ovos grandes, três colheres de água fria, uma colher de farinha fina de matzá, de preferência para bolos, e uma pitada de sal.
Bata os ovos, a água e a matzá como para panqueca. Unte uma frigideira e faça nela pequenas panquecas muito finas, douradas ao lado de baixo e só.
Coloque-as sobre uma toalha com a parte de baixo, dourada, para cima, para esfriar. Enrole cada panquequinha fina e corte em tiras bem finas. Ponha dentro do caldo quente de galinha, na hora de servir.

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