São Paulo, sexta-feira, 14 de abril de 1995
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Roteiro do Calvário

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Ninguém sabe de onde veio. Os evangelhos, vagamente, dizem que ele veio dos campos, no início daquela tarde, véspera de sábado e de Páscoa. Tampouco sabiam como se chamava. Sendo anônimo, o nome Simão ficava-lhe bem. E como os anônimos nasciam, viviam e morriam na Cirinéia, ele devia ser cirineu. Em termos de Brasil, equivalia a um Zé Paraíba.
Mais anônimo seria impossível, mesmo assim entrou e ficou na história. Como Pilatos e como aquele ladrão que mereceu o nome de bom. Ia esquecendo: tem Barrabás, também, o primeiro a ser salvo, literalmente, pelo Salvador.
Mas Cirineu parece ser o mais estranho. Ele trabalhara normalmente, não sabia o que se passava na cidade. Ao começar a tarde, decidiu recolher-se para guardar o sábado e preparar-se para a Páscoa. Não há certeza se o obrigaram a carregar a cruz daquele que seria crucificado. Desde a véspera não se verificara qualquer movimento de piedade para com o condenado.
Parece que o próprio Cirineu, sem saber de quem se tratava e do que se tratava, decidiu ajudar o homem maltratado pela noite de flagelos. Ninguém o impediu, como ninguém impediria, um pouco mais adiante, que a moça Verônica enxugasse com o véu o rosto coberto de sangue daquele que ia morrer.
No caso do Cirineu, o mais inexplicável foi o momento em que, chegando ao Calvário, ele se retirou como havia chegado: em silêncio, e apressado. A tarde ia alta e ele queria estar em casa antes que, anunciando o sabá, a primeira estrela brilhasse no céu da Judéia.
Ao contrário de outros que haviam se aproximado daquele que ia morrer, ele não aprovou nem condenou o sacrifício do desconhecido. Fez o que achou que devia fazer: ajudou.
Algumas estampas, a partir da Idade Média, mostram o condenado olhando para trás, como se agradecesse a ajuda. O Cirineu nem notou: para todos os efeitos, ele acabara de criar o modelo perfeito da solidariedade: ajudar sem saber a quem.

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