São Paulo, sábado, 15 de abril de 1995
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Dona Ida não perdoa

JOSUÉ MACHADO

"Banespa pedirá falência de mal devedor." Esse foi o espantoso título de jornal que causou alguma perplexidade à leitora Ida Moritz Cavalcanti, do Rio. Não por causa do pedido que iria fazer o Banespa, sempre tão bem-tratado por Quércia e Fleury, mas do uso da palavra "mal" nesse contexto, modificando "devedor". Será um devedor perverso, agressivo? Uma espécie de Edmundo palmeirense irritado e sem estribeiras? Alguém da progressista bancada ruralista?
Pergunta dona Ida se a forma correta não seria "mau pagador". Claro que sim, e já falamos disso aqui. "Mau" devedor ou "mau" pagador. "Mau" é adjetivo que classifica o substantivo "devedor" ou "pagador". O contrário de "bom", que é boa forma de saber quando usar "mal" ou "mau", como aprendemos na escolinha de dona Olga. E "mal" é advérbio, que modifica verbo, adjetivo ou outro advérbio. Usa-se "mau" quando no lugar dele "bom" vai bem; usa-se "mal" quando "bem" fica bom no lugar de "mau". Para ser bem repetitivo, é só testar o antônimo: "mal" é o contrário de "bem" e "mau" é o contrário de "bom". Quem sabe uma tabelinha grudada no computador?
A leitora aponta outro texto antológico do jornal. "Está-se há 12 dias dias do prazo dado pelo governo para apresentar ao Congresso uma proposta de revisão constitucional."
Bela oração. "Está-se há 12 dias..." Esse "há", de haver, referindo-se ao futuro é das coisas mais bonitas que um redator pode redatar. Claro que ele sabe que só em referências ao passado é que se usa "há", e que em relação ao futuro usa-se a preposição "a" desnuda. Mas há explicação para essas graçolas, como veremos à frente.
Tem mais dúvidas a leitora. Pergunta por que os jornais usam "enfrentamento" em vez de "confronto". E por que "consultar-se" com um médico, como já leu mais de uma vez.
Enfrentamento é ato ou efeito de enfrentar, de arrostar, como diria o senador José Sarney em "Marimbondos de Fogo". E enfrentar é pôr ou estar defronte, defrontar; atacar de frente; encarar, arrostar, afrontar. Confronto é o ato ou efeito de confrontar. E confrontar, pôr frente a frente, acarear; comparar, cotejar; defrontar, fazer face. Podem passar por sinônimos portanto. Mas "enfrentamento" talvez contenha carga maior de agressividade do que "confronto".
A propósito, as grandes palavras terminadas em "mente" ou "mento" costumam ser pesadas, deselegantes e tanhas, por isso quase sempre é melhor substituí-las por outras. Nisso, "confronto" leva vantagem.
E "consultar-se com um médico"? Uma pessoa mal-humorada ("mal", com "ele", ó computador) diria que isso é asneira, de asno. Mas deve ser apenas engano, porque o verbo "consultar" (pedir conselho, parecer ou instruções) repudia o "se", a não ser que o cidadão esteja refletindo, meditando, consultando a própria consciência, se for capaz. Ou várias pessoas, aconselhando-se umas às outras. Então, "consultar-se". "Os deputados consultaram-se sobre quanto deveriam ganhar."
No caso de visita ao médico ou ao advogado, a criatura vai "consultar", sem pronome, um ou outro.
Todos esses enganos podem ter uma das seguintes explicações, ou mais de uma:
1. o dedo do digitador escorregou; no caso de mau/mal, em vez de premir o "u" com o indicador da mão direita na linha de cima, apertou o "l" na linha inferior com o anular; é como se alguém confundisse feijoada com abacaxi;
2. o redator (redatora) se distraiu coçando a testa, pensando em por que a mulher dele (marido dela) teria murmurado o nome do (a) amigo (a) naquela hora feliz na noite anterior;
3. o computador, começando a revoltar-se com a singeleza da alma humana, sabota-lhe o trabalho;
4. a direção do jornal ou da revista aboliu os sistemas de revisão e conferência e passou a exigir perfeição de seus quadros, esquecendo-se de que "herrar é umano", como escreveu alguém (Millôr?) ou um viandante pândego, aperfeiçoando o conceito de Sêneca (55? a.C.-39? d.C.) -"Errar é humano.", depois retomado, por S. Bernardo (1090-1153) -"Errar é humano, mas perseverar no erro é diabólico.", e por Shakespeare (1554-1616) -"Todo homem erra sempre." e por Pope (1688-1744) -"Errar é humano; perdoar, divino." e por Goethe (1749-1832) -"Os mais curtos erros são os melhores."
Mas não foi Cristo, cuja morte os crédulos festejam, sim, festejam com bacalhoadas em vez de festejar-lhe a anunciada ressurreição -não foi Cristo que disse um dia a respeito dos enganos mais variados, inclusive de texto: "Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem."?

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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