São Paulo, quarta-feira, 19 de abril de 1995
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Marlui Miranda desbrava sons de 11 tribos

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

Marlui Miranda desbrava sons de 11 tribos
A cantora amazonense Marlui Miranda realiza em CD e livro o primeiro mapeamento da música de índios brasileiros
A cantora e compositora amazonense Marlui Miranda lança em show a partir de terça, no Sesc Pompéia, o resultado de 17 anos de pesquisa e risco por 50 nações indígenas da Amazônia.
Um livro e um CD, intitulados "Ihu" (palavra que significa "todos os sons" na língua dos camaiurás), apresentam o mais completo mapeamento já realizado da música dos índios amazônicos.
"O CD promove uma transferência cultural", afirma Marlui. "Pela primeira vez, a arte sonora do índio pode ser executada quase que literalmente por músicos urbanos ocidentais."
Nem um índio participou das sessões, a não ser como amostra gravada. Esta foi transcrita em partitura por Marlui segundo a notação clássica. As gravações aconteceram de novembro de 1993 a março deste ano em São Paulo, Belo Horizonte e Oslo (Noruega).
O CD traz, além da cantora, as vozes de Gilberto Gil, Grupo Beijo e membros do Coralusp. Entre os instrumentistas que aceitaram o desafio de interpretar estilos os mais diferenciados figuram o trio mineiro Uakti, o pianista norueguês Bugge Wesseltoff e o baixista paulistano Rodolfo Stroeter, também produtor do disco.
Stroeter fundou em março em São Paulo o selo Pau Brasil. O primeiro título é "Ihu". A venda da tiragem de 2.000 CDs cobre o custo da produção, de R$ 30 mil.
O livro deve ser publicado até o fim do mês pela editora Terra. Traz em 240 páginas as partituras das 16 músicas tais como figuram no CD, com inclusão de arranjos.
"Existe o preconceito de que os índios praticam uma música caótica e sem riqueza", explica a autora. "Queremos mostrar que, além de fecunda, ela deve ser considerada essencial à cultura brasileira."
Para atingir o alvo, Marlui viajou 15 mil quilômetros em duas expedições por aldeias longínquas e recolheu cem horas de gravação.
Bancou parte do dinheiro. Em 1986, ganhou uma bolsa da Fundação Guggenheim de Nova York. Em 1990, a Fundação Vitae lhe deu outra. Calcula ter recebido cerca de US$ 200 mil desde 1986.
Marlui julga que a música indígena é vítima de um bloqueio da sensibilidade da massa consumidora. "Quis fazer uma síntese sistematizada à maneira ocidental fora do ambiente etnográfico."
Escolheu, por isso, um repertório acessível à primeira audição do consumidor urbano: canções delicadas, melodias tristes e ritmos festivos e épicos. "Se eu começasse por sons mais radicais, não surtiria efeito."
A seleção contou com a ajuda de índios e antropólogos. "Mas a relação que me regeu foi amorosa. Meu trabalho é mais de interpretação do que catalogação."
Apesar de especialista, não se intimida em dizer que desconhece aspectos dos sons que pesquisou.
"Não saberia catalogar tradições tão distintas em termos técnicos europeus", explica. "Cada grupo tem seu sistema, hierarquias esquecidas, sentidos que os mais jovens perderam. Há enigmas que nem os índios sabem decifrar."
Imagina a música como a carteira de identidade do selvagem. "Ele costuma sonhar a música e só a mostra em conselho solene, porque a melodia dá status."
Lista espantos. Os "ñaumas" dos ianomamis são um processo pelo qual duplas se postam ombro a ombro para trocar notícias em diálogos monossilábicos rápidos. Os fonemas rompidos das palavras soam como ruídos desconexos.
As narrativas épicas dos suruís, compara, se parecem com as dos rapsodos gregos, pois o narrador, à maneira daqueles, cadencia a narrativa cantada com um bastão.
Marlui ainda não conseguiu traduzir a música "Kworo Kango", recolhida junto aos caiapós. Segundo ela, a tribo não sabe o significado da letra. Os caiapós assimilam as músicas de inimigos cativos e enxertam canções que ouvem no rádio a suas danças rituais.
Para Marlui, os caiapós aprenderam o canto de uma tribo rival vizinha, a dos jurunas. Estes já não o entoam mais.
A dificuldade dos intérpretes foi menor do que a da decifração do material sonoro bruto. Marlui treinou durante três meses o Coralusp para cantar com a garganta, à maneira dos índios.
Para imitar os "ñaumas", Gil teve de ensaiar durante horas. Marlui lembra que o Uakti se saiu bem: "O grupo faz uma música semelhante à dos indígenas".
A série de shows no Sesc não contará com Gil e Uakti. Um trio chefiado por Stroeter e o Coralusp se encarregarão do espetáculo.
Marlui tem ensaiado todos os dias. Mas considera teste definitivo o de levar o CD para tocar nas aldeias. "Tenho certeza que os índios vão rir e gostar de ver suas músicas tocadas pela primeira vez por não-índios", diz. "Nesse intercâmbio, vamos abrir uma porta para sair do etnocentrismo."

Evento: Ihu, Todos os Sons
Show: Marlui Miranda
Quando: de 25 a 30 de abril; de terça a sábado, às 21h; domingo, 20h
Quanto: R$ 10,00
Onde: Teatro Sesc Pompéia (r. Clélia, 93, tel. 011/864-8544, Pompéia, zona oeste)

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